Reimaginar a Arquitetura

Seria bom que aproveitássemos este momento para dar um novo fôlego à arquitetura, enquanto indústria criativa.

Comecemos por dar um passo atrás, até meados da década de 70. Por essa altura, a República Democrática Alemã (RDA) pôs em marcha um programa de construção residencial maciço, baseado em sistemas modulares e pré-fabricados em betão armado, com o objetivo de erradicar o seu défice habitacional até 1990.

Os sistemas construtivos utilizados foram fruto de importantes desenvolvimentos técnicos e experimentações arquitetónicas, com contributos vindos de diferentes geografias e com o conhecimento de alguns mestres da Bauhaus, a escola que revolucionou o modernismo. Marzahn (Berlim oriental) foi o epicentro deste programa, transformando-se no maior projeto de habitação coletiva da história europeia.

A meta deste programa de construção foi cumprida. Ironicamente, o programa atingiu o seu objetivo num momento em que deixou de ser necessário. Após a queda do muro de Berlim, o território correspondente à RDA sofre os efeitos de um gigantesco processo de emigração.

Apenas entre 1989 e 1990 cerca de 800.000 pessoas abandonaram a Alemanha Oriental. Onde anteriormente existia um défice habitacional passou a existir um excedente. Com efeito, nos anos 90 dá-se início a um processo de demolição – ou, melhor dizendo, desmontagem – parcial de edifícios com dois objetivos: por um lado, eliminar o excedente da oferta habitacional cuja procura sofrera uma redução abrupta; por outro, transformar aqueles bairros em zonas urbanisticamente mais enquadradas nos padrões ocidentais.

O nome de tal processo não podia ser mais claro: Normalisierung (normalização). Reduzia-se o número de pisos e revestiam-se as fachadas com poliestireno, escondendo as juntas que delimitavam os painéis pré-fabricados. A condição de modularidade inerente à pré-fabricação que foi essencial para a rápida montagem destes edifícios, acabou por permitir também a sua rápida desmontagem. Estes velhos painéis deram origem a novos edifícios, de diferentes tipologias, não só na Alemanha, mas também noutras geografias como a República Checa, a Polónia ou a Rússia.

Foto
Marzahn, em 1987 Hubert Link / Deutsches Bundesarchiv. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bundesarchiv_Bild_183-1987-0128-310,_Berlin,_Marzahn,_Neubaugebiet,_Wohnblocks.jpg

Este processo de reciclagem de elementos construtivos, tirando partido da sua elevada resistência e estendendo o seu ciclo de vida para lá da sua configuração original, provou ser uma alternativa aliciante em termos económicos e ambientais.

Não importa fazer aqui um relato historicista e aprofundado do que aconteceu. O objetivo é usar este acontecimento real (embora com uma carga de fascínio mais comum nas histórias de ficção) como mote para a discussão de temas incontornáveis da ordem do dia, como a versatilidade, a adaptabilidade, a reutilização ou a ecologia das construções.

Saltemos agora para o presente e, já agora, para Portugal. Em 2018, a Nova Geração de Políticas Públicas de Habitação foi aprovada em Concelho de Ministros. Um dos principais objetivos assumidos neste documento é o aumento do peso da habitação com apoio público para valores percentuais equivalentes aos da média europeia. Tal objetivo traduz-se numa operação massiva de construção – 170.000 novos fogos – a concluir até 2026.

Este prazo é claramente irrealista. Contudo, com o embalo dos milhões do Plano de Recuperação e Resiliência e com a pressão de Bruxelas para a sua aplicação, tudo indica que parte da missão será cumprida e que outra parte será pelo menos iniciada até àquele ano.

Tendo em conta a quantidade de casas a construir e o curtíssimo prazo para o fazer, podemos afirmar que esta será a maior operação de construção residencial pública alguma vez realizada em Portugal. Seria bom que todos nós aproveitássemos tamanha oportunidade para, tal como em Marzhan, reimaginar a arquitetura e para criar novas soluções capazes de responder aos desafios ecológicos, técnicos e tipológicos que a habitação contemporânea impõe.

Seria bom que aproveitássemos este momento para dar um novo fôlego à arquitetura, enquanto indústria criativa, com propensão exportadora, que emprega mão-de-obra altamente qualificada e na qual o nosso país, pela qualidade dos seus profissionais e das suas universidades, se destacada mundialmente. Se o soubermos fazer, poderá estar neste programa um dos pilares centrais da tão celebrada Nova Bauhaus Europeia em Portugal.

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