A banalidade da tragédia

Dir-se-ia que a tragédia televisiva é menos um género e mais uma arte performativa. Frequentemente, incita o espectador, de forma mais ou menos subtil, a pretexto de um bem comum, a atirar-se do precipício.

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Como escreveu Nassim Taleb, em O Cisne Negro, os nossos aparelhos emocional e cognitivo foram concebidos para a causalidade linear e, por isso, têm uma aversão natural ao caos e à incerteza. A literatura e a arte, nomeadamente, têm a função de nos poupar à complexa textura do tecido do mundo e de nos proteger dos efeitos desestabilizadores da sua aleatoriedade, conferindo um sentido à amálgama entrópica da percepção humana. As narrativas televisivas, nas suas múltiplas configurações (serviços noticiosos, derivados da telerealidade, por exemplo), executam a mesma função e são sintomas da mesma tendência – a redução dimensional. Ora, esta redução (a que Taleb chama falácia narrativa) não se faz sem um enviesamento, uma distorção, com carácter de erro sistemático, uma vez que exige sempre a definição de critérios de “edição” dos factos (o que é ou não relevante, o que se deve dizer, o que se deve ocultar, como se deve dizer).

A “falácia narrativa” tem géneros. Aquele que nos interessa, aqui, é o que Eduardo Cintra Torres designou por “tragédia televisiva”. Este género assenta, fundamentalmente, à semelhança das tragédias clássicas, na construção de personagens-tipo dramáticas (dicotomização entre vilões e heróis individuais ou colectivos, inocentes e culpados, carnífices e bodes expiatórios, etc.), enquadrados pela narratividade e pela linguagem arquetípica e simbólica próprias dos dramas trágicos. É um género que, na sua mise-en-scène, vive, hoje, intensamente, da monitorização (em directo) obsessiva e obsessora da catástrofe e da morte e da exploração (amiúde sensacionalista, despudorada e manipulatória) da intimidade, por via de um striptease emocional e sentimental que pretende satisfazer o apetite mórbido dos públicos.

A monitorização constante e ansiosa da dor, da guerra, da erupção, da doença, do escândalo, das cerimónias fúnebres, do corrupto, do homicídio, da agressão, do burlão, do acidente rodoviário, do tiroteio no bairro, do número de vítimas, convoca – valho-me, agora, de Mário de Carvalho – uma pulsão coloquial de oráculos, sob a forma de duos, trios, coros e outras grupetas, que se entregam a um falajar e a uma sobreexcitação intermináveis, na tentativa pírrica de explicar o caos e, presume-se, exorcizar a ameaça de um apocalipse iminente e definitivo. É um género que coloca o espectador em permanente estado de alerta, neurótico, sempre à beira do abismo, à espera da resolução do gancho narrativo, como num filme. Dir-se-ia que a tragédia televisiva é menos um género e mais uma arte performativa. Frequentemente, incita o espectador, de forma mais ou menos subtil, a pretexto de um bem comum, a atirar-se do precipício. Que é como quem diz: fazer-se participante da tragédia televisiva, sentindo-a como sua, transformá-la num happening, enfim, ainda que apropriar-se dela implique sucumbir às aflições do caos. Para criar o efeito de realidade, o espectáculo da mise-en-scène da tragédia televisiva envolve o espectador numa experiência imersiva, em que uma torrente frenética de sons, de dentro e de fora da narrativa, e imagens asseguram que a tragédia ganha a tridimensionalidade ominosa do real.

O espectáculo da tragédia televisiva entretém, conquanto forneça um retrato miserável da condição humana. Mas poderíamos atribuir-lhe, ainda, um carácter mais obscuro. O espectáculo é muito mais do que um conjunto de imagens e sons: é uma relação social entre os indivíduos, mediada por essas imagens e sons. E as relações sociais são sempre relações diferenciais de poder, muitas vezes manietado por grupos estabelecidos. O filósofo francês Gilles Deleuze e a jornalista Claire Parnet fizeram notar que os poderes estabelecidos sentem mais necessidade de nos angustiar do que nos reprimir, persuadindo-nos de que a vida é dura e pesada. Fazem-no, organizando os nossos pequenos e grandes terrores pessoais e colectivos, para forjar os seus escravos. É que a tristeza e a angústia que esses poderes transmitem diminuem a nossa potência de agir e conduzem-nos a uma astenia reflexiva. A este propósito, decida cada um que falácia narrativa prefere.

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