Um país sem rumo?

Na economia, parece prevalecer visão estatizante perante silêncio ensurdecedor da oposição sobre alternativas, projectos, ideias que sejam mobilizadores da vontade colectiva.

Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.

Eça de Queirós, in Cartas de Inglaterra

5 de Janeiro 2022: discutiu-se neste dia como lidar com a Ómicron depois do confinamento mitigado que marcou as festividades natalícias. Revejo o texto escrito e publicado neste jornal há precisamente um ano e no qual invoquei Eça de Queirós. Novos tempos, outras emoções, neste país amado que começa a ficar cada vez mais difícil de compreender.

A confirmar este desencontro, entre realidade e racionalidade, dois factos separados no tempo. Há um ano, eleições presidenciais, importantes sem dúvida, mas sem surpresas previsíveis sobre o seu resultado, nem sobre a dimensão do apoio popular ao Presidente reeleito. Para essa eleição, fomos convidados a votar antecipadamente e as razões eram lógicas: evitar aglomeração nas mesas de voto, caldo perfeito para disseminação do vírus. Verifiquei, então, que em Lisboa, concelho populoso, haveria apenas local para o dito voto antecipado, o que me fez desistir logo. Comprovei, no dia da votação, as longas filas e a aglomeração habitual. Adesão ao voto? Excelente, mas na minha mente angustiada não deixei de pensar que o vírus teria tido oportunidade excelente no seu caminho implacável. E interrogava-me se não teriam sido possíveis outras soluções? Tudo isto faz sofrer qualquer espírito que procure, com razoabilidade e lucidez, interpretar e compreender a nossa realidade.

Relembrar o passado, fim de 2020 e começo de 2021, com as consequências dramáticas que aconteceram, expectáveis - estava escrito nos astros –, deveria ter sido um exercício indispensável para os dias de hoje, em que predomina uma nova variante, cuja transmissibilidade assusta. Graças ao sucesso do programa de vacinação, parece ter consequências francamente menos graves. Ou será porque se trata de uma estirpe menos predisposta a atacar os pulmões, como passou na informação pública? E então os doentes que estão nas UCI, dos quais 90% que nos disseram não estarem vacinados? Se lá estão é porque provavelmente terão problemas respiratórios graves ou outros. Ou a infecção não será pela Ómicron? Outra variante?

Será que não aprendemos a importância duma informação pública coerente? Ou pretende-se encontrar uma justificação para novas decisões? Outra vez a gripezinha? Foi por isso que se abrandou a vacinação? E porque não se equipou com algoritmos capazes a linha SNS 24 com as consequências conhecidas? As notícias e comentários após a reunião desta semana do Infarmed surpreenderam-me, nomeadamente a libertação da obrigação de confinamento aos doentes e aos infectados assintomáticos com manifestações ligeiras, para que possam ir votar no próximo dia 30.

Cirurgião vascular não é especialista na matéria e com humildade o reconheço. Mas como cidadão, que entende a importância do processo para a eleição de deputados para a Assembleia da República e para o futuro do país e que o objectivo deveria ser assegurar a maior participação possível dos eleitores e a redução do abstencionismo, fico perplexo. E o que me surpreende é que só agora, a quente, se equacione o problema.

E uma perplexidade: estando a sociedade a viver em pandemia, não duvido que a marcação da data das eleições teve em conta quer a situação previsível após as festas natalícias, como a necessidade de assegurar todos os meios para uma votação sem entraves e maciça. Perplexidade que se agravou depois de ouvir, há dias, um responsável da Comissão Nacional de Eleições (CNE), assumir que nada tinha sido equacionado e que nada poderia fazer. Então para que servem estas instituições públicas? A sua obrigação não seria promover o voto, prever e eliminar todos os obstáculos potenciais à concretização desse direito democrático e dever pelos cidadãos e procurar soluções? Valha-nos a interrogação do Bastonário da Ordem dos Médicos no noticiário da tarde – não seria possível ter organizado voto electrónico? Deu o exemplo das eleições na Ordem que vêm sendo por votação electrónica e não presencial, e ninguém se queixou ou pôs dúvidas o rigor e legitimidade dos resultados.

Não sendo tão moderno como o Dr. Miguel Guimarães, interrogo-me se não teria sido possível ter equacionado em Dezembro, logo que se soube a data das eleições, o voto por correspondência? Não seria possível fazer chegar a cada domicílio, boletins de voto com envelopes endereçados a um centro de contagem de votação, onde estivesse assinalada a identificação do eleitor com o número de cidadão e de eleitor, de modo a impedir fraude por dupla votação? E o processo não poderia iniciar-se duas semanas antes do dia 30 para que não houvesse sobrecarga nos correios e que os votos fossem descarregados nos cadernos eleitorais, num processo confidencial e rigoroso? Seria isto impossível?

E o voto electrónico, uma impossibilidade técnica? E a informação que circulou sobre cerca de um milhão de inscritos nos cadernos eleitorais que já faleceram? Então não foi possível actualizar os cadernos eleitorais, ainda por cima quando já temos os dados do Censo 2021?

Como pode tudo isto acontecer no nosso país, membro da União Europeia e no século XXI? Que imagem se pretende dar da democracia? Não há o dever de proactividade, de previsão das dificuldades para antecipar soluções? E como é que nenhum partido protestou e exigiu acção em conformidade à CNE e ao Ministério da Administração Interna? Eça mantém absoluta actualidade. Nas Cartas de Inglaterra acrescentava: a nossa pobreza relativa é atribuída a este hábito político e social de depender para tudo do Governo, e de volver constantemente as mãos e os olhos para ele como para uma Providência sempre presente. O pior é quando o Governo não actua...

Sobre a arte da prática democrática - a democracia, sendo embora o pior dos regimes, não encontra nenhum outro melhor, como afirmou Churchill - volto a Eça e à arte da oposição e ao que se pode antever dos debates que vão continuar a preencher as televisões, pela amostra do que já ocorreu. O que seria legítimo esperar? Barganha do poder ou a discussão do que interessa ao país, dos problemas na saúde, na educação, na economia, na justiça e que alternativas políticas para a sua solução? O que é que cada partido propõe aos cidadãos, para que eles possam fazer uma escolha informada?

E o partido do Governo? Agora que se descobriu sem confiança nos parceiros da esquerda, haverá outras políticas? Na economia, parece prevalecer visão estatizante perante silêncio ensurdecedor da oposição sobre alternativas, projectos, ideias que sejam mobilizadores da vontade colectiva. O discurso oscila entre um apelo claro ou subliminar à intervenção do Estado como agente económico fundamental, em detrimento dos agentes privados, numa economia débil e em dificuldades graves. Esta perspectiva terá encontrado racionalidade na lógica da coligação, ora formal ora informal, que recebeu o nome de “geringonça”. E agora? Será esse o caminho? Sabemos aonde nos conduziu no século XX e a memória desse tempo não é assim tão distante. Todas estas preocupações, parecem-me legítimas e necessárias. Mas receio que fiquem fora da discussão política, prisioneira de frivolidades, sem outro objectivo que captar a atenção e os soundbites mediáticos.

Termino, como há um ano, citando Miguel Monjardino que, com grande lucidez, escreveu que as consequências sociais, económicas e financeiras da pandemia terão fortes repercussões políticas. A memória do que garante a nossa segurança transatlântica e liberdade está a desaparecer em Portugal. Preservar essa memória do que é essencial para construção do futuro, fomentar a cooperação que a sustente, será porventura, o maior desafio à política. E não há tempo a perder!

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