Saúde oftalmológica não pode voltar a ser colocada em fila de espera
Eventuais medidas de contingência que venham a ser pensadas devem ter em consideração não só os doentes com covid-19, mas também, e em especial, o impacto que terão nos doentes com outras patologias potencialmente mais graves, incapacitantes ou mesmo mortais.
Há doenças da retina que não podem ficar à espera de tratamento. O atraso pode acarretar risco de perda grave e irreversível de visão, ou até mesmo causar cegueira. Na sua maioria, estas patologias necessitam de tratamento num espaço de tempo que pode ser de poucas horas, poucos dias ou poucas semanas. Atrasar o acesso ao tratamento poderá ser um caminho sem retorno.
Algumas destas patologias são muito prevalentes na população portuguesa, como a retinopatia diabética e a forma avançada da degenerescência macular da idade (DMI). A primeira afeta mais de 30.000 pessoas e é a primeira causa de cegueira em Portugal na população em idade produtiva. A segunda afeta cerca de 37.000 pessoas com mais de 55 anos de idade e é a primeira causa de cegueira em Portugal acima dos 65 anos de idade. São duas patologias em que o atraso no tratamento pode gerar consequências graves e irreversíveis em termos de perda grave de visão e mesmo cegueira.
A pandemia veio atrasar a referenciação destes doentes, o diagnóstico e o tratamento atempado. A nível da retinopatia diabética, por exemplo, os programas de acompanhamento e vigilância sofreram uma quebra, ao nível das suas atividades, na ordem dos 16,5% no ano de 2020. Em 2021, assistiu-se a uma tentativa de recuperação, mas que não deixou de ser afetada pela mesma pandemia. O SNS, de facto, suspendeu praticamente toda a atividade assistencial durante vários meses em 2020 e depois em 2021, para se preparar para receber os doentes covid-19, e os serviços de Oftalmologia não foram exceção. A atividade clínica, durante esses períodos, esteve limitada a dar resposta a situações urgentes, devido à escassez de recursos materiais e humanos e de espaço físico. Milhares de consultas foram canceladas.
Mas a pandemia não afetou apenas a referenciação e o diagnóstico. Milhares de cirurgias e tratamentos foram também cancelados. Sabemos que são patologias que requerem não só tratamento atempado após o diagnóstico, mas também um tratamento regular ao longo dos anos, de forma a manter a melhoria da acuidade visual conseguida com os tratamentos iniciais. Foi feito um enorme esforço de recuperação em 2021, com a implementação de períodos adicionais de cirurgia e de tratamentos, mas a retina não pode esperar. Este esforço não permitiu, na maioria dos casos, recuperar a visão que foi perdida com o início tardio dos tratamentos ou com a sua interrupção.
A implementação de medidas semelhantes às do ano 2020 pode ter efeitos profundamente graves e irreversíveis para a visão dos portugueses. É cada vez maior o número de doentes que são diagnosticados tardiamente, que iniciam o tratamento numa fase avançada da doença e que, mesmo depois de o iniciarem, não recebem o tratamento com a regularidade necessária. Não é possível ainda quantificar o impacto da pandemia na saúde visual dos portugueses, mas é de esperar que muitos doentes sem seguimento adequado apresentem, neste momento, perdas irreversíveis de visão. Por outro lado, o número de casos de covid-19 que se registaram no fim do ano de 2021 representou um aumento para mais do dobro, comparando com o mesmo período de 2020, mas o número de doentes internados foi cerca de três vezes menor e o número de óbitos foi cerca de seis vezes menor. A diferença esteve na vacinação. De facto, dois terços dos casos de internamento e de óbitos eram relativos a doentes não vacinados.
Qualquer implementação de medidas de contingência que venham a ser pensadas devem ter em consideração não só a situação dos doentes com covid-19, mas também, e em especial, o impacto que estas medidas terão nos doentes com outras patologias potencialmente mais graves, incapacitantes ou mesmo mortais. As doenças da retina capazes de provocar cegueira irreversível, como por exemplo a DMI e a retinopatia diabética, mas não só, não podem novamente ser colocadas em espera.
A atividade normal no SNS deve ser mantida e os programas adicionais não devem ser interrompidos, mas sim reforçados sempre que possível. É necessário planificar, de forma credível e estruturada, para fazer face ao momento atual e ao futuro. E é fundamental a consciencialização das populações em relação a estas doenças, que não provocam dor, olho vermelho ou lacrimejo, mas que são a primeira causa de cegueira em Portugal depois dos 20 anos de idade.