Generalizações perigosas

Tratar os justos como pecadores é um contributo decisivo para que partidos radicais que acirram e parasitam a polarização política consigam persuadir membros das forças de segurança a subscrever as suas teses.

A generalização sempre foi a mais fiel compagnon de route da radicalização política. O facto de as generalizações políticas serem perigosos erros disfarçados de sabedoria não parece preocupar alguns jornalistas e políticos do nosso país, especialmente os que se situam ideologicamente nos extremos do espectro político. Todos nós as conhecemos: “a direita fascista e ao serviço do grande capital”, “os bairros de criminosos”, “os imigrantes usurpadores e preguiçosos”, “Portugal é um país racista”, “Portugal não é um país racista”, “a esquerda totalitária” ou, mais recentemente, “O Estado xenófobo, torturador e assassino” (Ana Sá Lopes, PÚBLICO, 19/12/21).

Que o justo não deva pagar pelo pecador é um princípio deveras venerável, consagrado em qualquer regime jurídico liberal-democrata digno do nome. É um pressuposto inviolável da Justiça e da mais elementar decência e honestidade intelectual. Quando se escreve que o Estado Português é xenófobo, torturador e assassino, não se está a descrever um facto empírico. Não foi o Estado Português que matou, discriminou ou torturou. Teria sido o Estado se, e só se, a Assembleia da Republica tivesse aprovado leis que permitissem estes actos sórdidos e/ou se a sua ocorrência fosse reiterada, ou explicitamente ou tacitamente consentida e fomentada pelas instituições estatais. O artigo de Ana Sá Lopes, aqui publicado no dia 19 do mês passado, insulta mais de 46.000 pessoas que maioritariamente cumprem exemplarmente as suas responsabilidades, não obstante o facto de serem mal pagas e raramente devidamente reconhecidas pelo serviço que prestam à comunidade.

Os moralistas empedernidos, sempre prontos a tratar o todo como uma parte, esquecem-se de algo deveras importante. Tratar os justos como pecadores é um contributo decisivo para que partidos radicais que acirram e parasitam a polarização política consigam persuadir membros das forças de segurança a subscrever as suas teses. É sabido que a percepção e o sentimento de injustiça (social, racial etc.) é um dos mais importantes factores na radicalização política. Curiosamente, todos os que trabalham no domínio da segurança, tal como os socialmente e racialmente excluídos (etc.), compartilham uma condição nada invejável: ambos são frequentemente sujeitos a generalizações injustas e perigosas que pouco ou nada tem que ver com a realidade concreta das comunidades onde trabalham e convivem. O estigma da generalização injustificada e injusta radicaliza as maiorias inocentes, erguendo barricadas perniciosas onde se devia construir pontes. A estigmatização é, certamente, um dos mais dolorosos efeitos da injustiça. Também é sabido que o fervor da militância pode causar uma muito debilitante cegueira que nada tem que ver com a isenção e com o rigor jornalístico. Ainda mais perturbante é a facilidade com que os mais bem intencionados moralistas escolhem a arma (generalização) que é utilizada por aqueles que criticam veementemente.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários