O dente de leite do meu avô

Reza a história, não sei se lenda ou de verdade, que em rapaz teria atacado uma caixa de comprimidos para os dentes, por serem doces que nem rebuçados, e engolido todos de uma vez só.

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Dizia-se lá em casa que o avô tinha um dente de leite que nunca caíra. Reza a história, não sei se lenda ou de verdade, que em rapaz teria atacado uma caixa de comprimidos para os dentes, por serem doces que nem rebuçados, e engolido todos de uma vez só. Ter-se-ia assim retardado o crescimento dos molares, que vieram já quase em idade adulta, um deles empatado para sempre por esse dente de leite casmurro que se recusava a cair. Imaginei-o muitas vezes, um dente pequenino, subdesenvolvido, perdido no meio dos restantes - mas nunca lhe pedi que mo mostrasse.

No dia em que o avô foi para o hospital, um novelo de questões entupia-me a boca, incluindo a veracidade da história do dente de leite. Quando os nossos familiares estão no leito da morte, ganhamos de repente um sentido de urgência: lembramo-nos de todos os carinhos que não demos, dos aniversários que passámos longe, das perguntas que deixámos por fazer. Mas o avô, pouco lúcido, falava-nos do mar da Apúlia e pedia que o levássemos de volta ao parque de campismo que ele via ali ao fundo, do outro lado da janela, espelhados nos muros cinzentos da ala hospitalar.

Acabei, portanto, por não dizer nada a respeito do dente de leite ou qualquer outra das questões que me assolavam. Só uma me saiu, num impulso, já a meio das despedidas dessa que seria, sem que o soubéssemos, a última vez que nos víamos: “Avô, porque é que não foste para as colónias?”. A urgência daquela pergunta, tão absurda naquele contexto, ainda é pouco clara para mim. Apercebera-me, nesse ímpeto, que o avô falava muito do seu tempo de tropa, mas nunca mencionara África, a guerra. “Não calhou, filha.”

Foi das últimas palavras que trocámos, a vida resumida assim a um jogo de sorte e de acasos. Talvez também tenha sido um acaso que por baixo do bigode branco o avô tenha conservado um eterno sorriso traquina de menino; que, quando achava que ninguém estava a olhar, comesse açúcar às colheres, saídas directamente do açucareiro, ou que fumasse cigarros às escondidas na casa de banho. Mas algures no fundo de mim, tenho em crer que os seus actos de criança eterna fossem consequência directa do dente de leite que nunca caiu.

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