De Santo Agostinho à perda da santidade de Valter Hugo Mãe

Há poucas pessoas com tão grande responsabilidade pela desgraça, tristeza e frustração como Santo Agostinho, que associou a sexualidade ao pecado. Os psicólogos devem-lhe muito.

Recorrentemente, quando dou algum curso para um novo público, afloram algumas questões que tantos de nós desejavam ver respondidas. Quantas vezes eu já fiz o quadro histórico da evolução do celibato dos padres, mostrando ser, de forma generalizada e obrigatória, uma realidade relativamente recente que só se tornou norma no catolicismo no Concílio de Trento (1545-63).

C. S. Lewis dizia que a castidade é a menos popular das virtudes cristãs, relembrando-me da luta interior, contra si mesmo, que Santo Agostinho, no seu longo processo de conversão, tão bem caracterizou na oração que em juventude dizia: “Senhor, dá-me castidade e continência, mas não já” (Confissões, Livro VIII, C. VII,17).

Agostinho, talvez o maior e o mais marcante teólogo do chamado mundo ocidental, deu o fecho a uma visão pecaminosa do ser humano, um pecado inultrapassável cometido através de Eva que, dessa forma, maculava as mulheres até ao fim dos tempos. Milhares de milhões de crentes cresceram com o fantasma da sexualidade como pecado que impossibilitava a salvação, votando as mulheres para um lugar de repulsa a que se deveria fugir.

Mas essa castidade cantada por Agostinho, mais que implicar um pensamento em que o santo não se inibiu a ir recriando o seu desejo de castidade como desejo de ser humano, de amar e ter prazer, afirmando querê-la, “mas não já”, leva-nos à própria negação do que é o humano. Possivelmente, há poucas pessoas com tão grande responsabilidade pela desgraça, pela tristeza, pelo desencanto, pela frustração como Santo Agostinho. Como potenciador profissional, os psicólogos muito devem a Agostinho.

Negar o ato mais natural de uma espécie é criar um distúrbio imenso, castrando parte do que seria esperado para completar o ser. A grande questão dos abusos sexuais na Igreja Católica não reside nos crimes (esses são horrendos e não deverá haver a mínima complacência); É muito mais profundo o dano: ele reside na incapacidade de quem assumiu essa castidade e a vive, muitos, amargurados com ela, de rever, quer a visão face à mulher que a inibe do sacerdócio, quer a defesa da castidade dos sacerdotes.

Ao estar tão longe do que é o ser humano, reprimindo-o até à loucura ou à necessidade desequilibrada de o levar a abusar dos mais desprotegidos, a Igreja Católica procura manter o seu statu quo através da colaboração ativa, ou mesmo tomando a iniciativa, de investigar, punir os culpados e indemnizar as vítimas. Mas a grande questão não é essa: quando é que a hierarquia vai abraçar as causas das patologias psicológicas que são criadas por uma formação que reprime a sexualidade e cataloga a mulher como fonte do pecado?

Quantos padres com vocações de excelência não abandonaram as suas funções religiosas de forma amargurada, sentida, por não terem podido construir uma família? Quantas relações foram mantidas secretas, com mulheres e filhos a nunca terem podido receber o carinho e o afeto que mereciam? Quantas crianças e jovens perderam a sua confiança na Igreja, nos padres e até em Deus porque se sentiram traídos por aqueles que os deviam proteger?

Recupero o trecho final da descrição de uma situação de abuso relatada no recente livro Contra Mim, uma narrativa autobiográfica de Valter Hugo Mãe:

“Quando me deitei e fiz as minhas preces, senti que eu mesmo virara um louva-a-deus. Também eu poderia fazer uma prece sem sentir nada. Talvez pior, acompanhava a prece de uma súbita raiva por Deus, por me haver humilhado e colocado em perigo num ambiente onde se esperaria encontrar pessoas mais bondosas, as que teriam por ofício conduzir os santos ao seu esplendor. O louva-a-deus reza sem compromisso. Foi como me senti. Que meu compromisso se havia suspendido.”

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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