O lugar do efémero quando o efémero deixa de ter lugar

Nos tempos em que um telemóvel povoa cada bolso, podemos questionar a urgência de colocar a tenda da testagem à vista de todos, quando numa rápida pesquisa podemos ser acompanhados por um prático caminho em direcção ao cumprimento desta nossa sina. Não há outro lugar para estas tendas-teste?

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Paulo Pimenta

Há um novo distópico ocupante no espaço público: um pequeno cubo branco, higiénico, salubre, com cobertura inclinada à europeia, ou pontiaguda, à árabe, alapou-se nos melhores lugares da cidade, à caça de voluntários activos para a testagem. Não há praça mais histórica ou jardim mais nobre que não tenha sido apoderado por este icónico transeunte. Talvez a Sul, este nosso totem passe mais despercebido, embebido na paisagem caiada à cor pura, mas por aqui o amistoso OVNI não se consegue (nem se quer) camuflar. O pior da poluição urbana não são os mupis e outros letreiros do consumo que instantaneamente nos distraem das mazelas do mundo, são estes intimidantes barracos da saúde, que a todo o momento nos lembram da nossa sorte, da nossa culpa, do nosso crime e da nossa luta incessante por uma qualquer ideia de longevidade.

Nos tempos em que um telemóvel povoa cada bolso, podemos questionar a urgência de colocar a tenda da testagem à vista de todos, quando numa rápida pesquisa podemos ser acompanhados por um prático caminho em direcção ao cumprimento desta nossa sina. Não há outro lugar para estas tendas-teste?

Há.

No início deste século, entre a arquitectura, a sociologia e a geografia, falava-se de uma certa ideia de não-lugares: coisas como aeroportos, estações de metro, salas de espera, parques de estacionamento - espaços colectivos recentes, de carácter transitório (contrários à ideia de permanência) que, no cancioneiro urbanístico, aguardavam ainda por definição, caracterização e simbologia. Claro que hoje, por exemplo, um aeroporto ou uma repartição de finanças já ganharam contornos de lugar, ombreando na história o mesmo plateau simbólico das praças, dos jardins e dos teatros. Mas o que são então hoje estes não lugares? Talvez ainda os parques de estacionamento, os lotes urbanos esvaziados, as lojas por alugar, os elefantes brancos do consumismo desenfreado, as naves industriais obsoletas, os becos, os ângulos mal resolvidos e outros restos, que a gestão criativa da cidade, o lucro e o bom gosto não conseguiram (ainda) resolver.

E não há outro lugar para estas tendas-teste? Há. Algures por aqui, entre estes e outros espaços em excesso temporário, embebidos (e não sobrepostos) na complexa e intrincada malha de cidade, simbolicamente escondidos num lugar secundário dos nossos dias, mas estrategicamente perto para cumprir o seu inevitável fundamento. Se tanto tempo depois ainda não conseguimos garantir que o estado do novo normal não passou de uma moda de linguagem esmiuçada à exaustão, e que talvez (nos nossos sonhos mais equilibrados) tenha vindo para ficar, então está na hora de começarmos a despoluir o espaço público desta (inestética) temática sanitária que transforma os percursos e a permanência em lugares de continuada excepção.

Se o caminho é o de aprendermos a viver endemicamente preocupados com a saúde, então pelo menos que o espaço público sirva para, temporariamente, descansarmos de nós próprios. Temos sempre o telemóvel para os alertas de alarme e a vigília activa. Deixemos os olhos disponíveis para outras alegrias.

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