O cancro pode ser uma história de amor

Sim, é possível amar um cancro, graças a enfermeiros e médicos que sabem como transformar dores de alma em sorrisos de afeto.

Confina e desconfina: eis as consequências para crianças e adultos que vivem com doenças não transmissíveis (DCNT) e para outras pessoas que se confrontam com o diagnóstico de cancro. Passamos a amar mais o nosso corpo e a nossa doença. Na verdade, dormimos e fazemos amor com o corpo dentro do nosso corpo.

As medidas de distanciamento físico podem prevenir a infeção de covid-19, mas atrasam e condenam à morte quem tem uma DCNT com o doce-amargo do confina e desconfina, que faz aumentar comportamentos de risco, sedentarismo e uso de substâncias nocivas. Aumentaram os casos de cancro: a Organização Mundial de Saúde estima que tenham surgido 30 mil novos casos em 2020, dos quais 10,5 mil poderão resultar em morte.

Maria, de 50 anos, teve de recorrer a um hospital privado para tratar um cancro. Atrasos no diagnóstico, falta de adesão à terapia e interrupção do fornecimento de medicamentos agravaram o seu estado de saúde. O SARS-CoV-19 trouxe novas rotinas aos portugueses e os serviços de saúde e sociais.

A Maria (escrevo como se ela fosse eu) deu um trambolhão e magoou o joelho. Surgiu uma hematúria. Descobriu assim o seu cancro, entrado em si, sem bater à porta. O cancro invadiu-a e ela hoje faz amor com ele todos os dias. Até me diz que o ama. Descrever esta relação de afeto à doença faz com que, à luz da evidência disponível, consiga discutir com mais de dez médicos, para compreender, exasperadamente, como foi apanhada nas teias, já que é uma mulher velha, saudável, não fumadora, peso adequado, etc. É que, quando eramos miúdas, as nossas saídas à noite, desesperantes de cansaço e de tanta dança, eram carregadas pelo fumo dos outros. Ou seja, Maria foi toda a vida uma fumadora passiva do fumo em que se embrulhava.

A história da Maria não pode ser contada sem falar de todos aqueles que cuidam e tratam de pessoas como ela, que embora não tenham as melhores condições, primam pela humanização, pelo rigor técnico e pela indiscutível excelência. No hospital de Santa Maria, falo do André Mansinho, oncologista jovem, meigo no trato, seja com velhos ou novos, letrados ou não e da doce Cristina Bárbara, diretora da Pneumologia. Do Luís Campos Pinheiro, que dirige a urologia, com delicadeza, serenidade, olhar cativante e mensagem clínica assertiva.

No Hospital de S. José, um velho convento a reclamar por obras, gravamos vozes no ouvido. As das enfermeiras Ana Carina Soares e Fátima Lopes, que se dirige à senhora dona L., com mais de 90 anos, e que entre outras complicações de foro oncológico, padece de demência, com um “bom dia princesa”. E também as vozes dos enfermeiros Carla Matos e Márcio Ribeiro que, nos tratamentos de quimioterapia transformam dor em alento, e da assistente Dina Seguey, que se dirige a nós como se fossemos rainhas cheias de nobreza.

Sim, é possível amar um cancro, graças a enfermeiros e médicos que sabem como transformar dores de alma em sorrisos de afeto. Alexandre O’Neill já o tinha dito e escrito em O Poema Pouco Original do Medo: “...Ah o medo vai ter tudo, tudo (Penso no que o medo vai ter e tenho medo que é justamente o que o medo quer)”. Aprender a amar o cancro faz dele o nosso maior aliado, o melhor amante, o melhor amigo. Tantas almas generosas nos perseguem e nós não temos medo... e isto é comunicar a saúde dos afetos.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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