Reflexão sobre rede ciclável

É tempo de se passar a definitivo o que foi lançado como provisório em Lisboa. A marca (ciclovia) já foi assimilada pelo público-alvo, o sucesso está garantido.

Chegando ao fim de uma vereação que ficou marcada pela rápida expansão em Lisboa da sua rede ciclável, bem como pela banalização do uso da bicicleta com transporte urbano, urge uma reflexão sobre o donde viemos, onde estamos, para saber aonde queremos ir, com selim ou se sem ele.

O número de bicicletas tem tido um aumento progressivo ao longo de vários anos, mas é marcado especialmente por dois eventos: o aparecimento da rede de bicicletas partilhadas Gira, e a expansão da rede com as ciclovias pop-up durante a pandemia.

Este aumento constante deixa bem claro que havia uma procura latente, pendente da existência de ciclovias. Indicia também que há muito ainda por onde crescer quando uma rede mais completa for implementada.

Todas as vias onde foram introduzidas ciclovias, tiveram um forte aumento do número de ciclistas a percorrê-la, sendo o designado “eixo central” (Avenida da República - Av. Fontes Pereira de Melo, cruzando com a Av. Duque d’Ávila) o caso de maior e mais visível sucesso, e também mais consensual. A Av. Almirante Reis, por outro lado, e que já tinha naturalmente alguma procura por ser a única que faz uma ligação suave entre Sul e Norte do lado oriental do centro, tem sido bastante polémica, sendo mesmo corrigida por quatro vezes; não obstante, viu o número de ciclistas triplicar em pouco tempo quando a ciclovia foi instalada.

O contínuo aumento de ciclistas nas ciclovias já consolidadas, indicia um efeito de rede, ainda por consolidar, senão mesmo concretizar: as novas ciclovias, ao permitirem novas ligações às ciclovias consolidadas, sendo-lhes complementares, potenciam o uso das já existentes.

Provavelmente a principal razão do efeito positivo das ciclovias, é a (sensação de) segurança que elas possibilitam aos utilizadores. Inversamente, ainda que em muito menor grau, o efeito negativo reside ainda na (sensação de) insegurança do lado dos peões que, involuntariamente incautos, porque são confrontados pelos ciclistas, ao jeito do que eram os seus homólogos aquando da chegada do automóvel (uma sensação, aliás, frequente de quem tomava conhecimento com as bicicletas da Europa mais avançada, aqui há 30 anos, hoje um dado adquirido um pouco por todo o mundo.

Seja como for, decorrem daqui vários pontos para o futuro.

  1. A infraestrutura ciclável em Lisboa tem de ser pensada como uma rede de interligações. É claro que não é possível criar uma rede instantaneamente, mas haverá ligações que devem ser priorizadas face a outras. Isso é evidente.
  2. A rede ciclável deve segregada dos canais automóvel e pedonal. Quando se optar, por força maior, por uma solução 30+bici é imprescindível haver medidas de acalmia de tráfego, como lombas sinusoidais.
  3. A rede ciclável não deve dificultar a mobilidade de transportes públicos e peões, sob pena de desincentivar estes modos, tornando-se contraproducente.
  4. O uso de ciclovias bidirecionais não deve ser uma opção dentro do tecido urbano consolidado: a)restantes utentes da via não esperam alguém em sentido contrário, potenciando colisões; b) não se integra com a restante rede viária - dificultando entrada e saída; c) a tipologia da rede (unidirecional, bidirecional, sharrow, etc) adequada a cada contexto está bem padronizada em vários documentos nacionais e internacionais, e isso deve ser respeitado.
  5. Muita da infraestrutura existente foi feita apenas ao longo de troços das vias (até pela sua natureza pop-up, de construção com o mínimo de obras). Mais importante para a segurança dos ciclistas, é a existência de infraestrutura ciclável nos cruzamentos, legível para todos os utilizadores da via.
  6. A rede deve ser desenhada de modo a que a navegação seja óbvia e intuitiva, e não aos ziguezagues pela cidade.
  7. Nas ruas secundárias, devem ser criados contrafluxos (vias de duplo sentido para os velocípedes, mas com proibição de um dos sentidos para veículos ligeiros e pesados - dada a sua dimensão). Esta solução permite encurtar ligações e reduzir o desnível de deslocações, facilitando o uso da bicicleta. De notar que muitos sentidos únicos são criados para impedir tráfego de atravessamento automóvel num bairro, o que não faz sentido para a bicicleta. É uma solução em prática há várias décadas nos Países Baixos, França, Bélgica, etc. sem problemas de sinistralidade.

Concluindo, é tempo de se passar a definitivo o que foi lançado como provisório, a marca (ciclovia) já foi assimilada pelo público-alvo, o sucesso está garantido, a estratégia não terá sido a melhor nalguns casos, mas é tempo de corrigir e não de recuar, e, sobretudo, de tornar inclusiva a sua oferta, e não exclusiva de privilegiados, seja dos mais endinheirados, seja dos que vivem e trabalham no “sítio certo”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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