Angola e os dias comemorativos: “Eh, me faça um favor!”

Makas de uma angolana 2 A história de Angola, quase toda por fazer, é parca no calendário de comemorações oficiais, mas do qual constam, ainda assim e sem que se perceba bem porquê, algumas datas que sangram mais que saúdam.

Respeita! “Também somos linha da frente de toda essa história”. Segue assim o tema de Paulo Flores e Yuri da Cunha, dessa geração sem armas e sem glória, a girar agora no meu leitor de CD, acompanhando a escrita de mais estas imagens de povo voando no meu pensamento, nesta balada de novembro onde se comemora mais um ano de Dipanda, da independência de Angola assinalada dia 11 deste mês. 

A história de Angola, quase toda por fazer, é parca no calendário de comemorações oficiais e isso revela-se nos poucos dias feriados que cabem aos da terra gozarem, mas do qual constam, ainda assim e sem que se perceba bem porquê, algumas datas que sangram mais que saúdam. O mais inconcebível de todos os dias comemorativos é o de 17 de setembro, data que pretende única e verdadeiramente assinalar o nascimento do poeta e médico Agostinho Neto, combatente do MPLA considerado como o fundador da Nação que, de forma mentirosa e injuriosa, arrasta para o lamaçal o Dia dos Heróis Nacionais ou, por outras palavras, o dia que é o dele e de todos aqueles que ele assassinou, apagou, retirou do caminho, afastou ou mandou matar.

Ao insensato 17 de setembro junta-se o incontestável 4 de janeiro, Dia dos Mártires da Repressão Colonial, a fazer lembrar a exigência de mais um dia, um Dia dos Mártires que represente todos os reprimidos, perseguidos, fuzilados e aniquilados heróis que Angola vem, simultaneamente, somando e abatendo desde a sua existência enquanto Reino do Congo, que, estranhamente, não vê data assinalada, até aos dias de hoje, onde a taxa de mortalidade infantil supera os números oficiais, onde a taxa de ocupação de estabelecimentos prisionais supera a sua capacidade, onde a saúde mental é um problema real no seio de qualquer família, onde os veteranos de guerra vivem no limiar da pobreza, contrastando com os luxos e honrarias de um núcleo de generais feitos nos gabinetes da Cidade Alta.

Depois há, justamente, o dia 4 de fevereiro, assinalando o Dia Nacional do Esforço Armado e esquecendo oficiosamente o verdadeiro herói que foi Juca Valentim, nome de batismo Eduardo Artur Santana Valentim, nascido na Gabela a 16 de fevereiro de 1965, preso pela primeira vez em 1969, sob a mira armada do regime colonial, e pela última vez em 1977, sob a ganância da catana do meliante da nação, o poeta-assassino a quem a vida de Valentim não ocorreu poupar.

Contrariando a Angola de Cabinda ao Cunene, o calendário oficial de feriados dá merecido destaque ao Dia da Cidade de Luanda, que se comemora a 25 de janeiro, para depois se esquecer de todas as 17 províncias que formam o país, desvelando assim o que vem há anos encobrindo: que Angola é Luanda e o resto é dinheiro no bolso de um círculo vicioso de governadores. Aliás, o esquecimento das restantes 17 províncias é facilmente comprovado no mais recente projeto de mapa nacional divulgado em surdina no passado mês de agosto, afirmação de que Angola não tem, 46 anos versados da independência nacional, um mapa oficial que caraterize o país, as suas regiões, populações, línguas e restante dados demográficos tão preciosos para um Estado que não cumpriu o dever de ser nacional e longe ficou de honrar o compromisso em ser patriota.

E assim, o hino à Pátria dos que jamais se esquecerão dos heróis do 4 de fevereiro deixa tanto por dizer que nos envergonha a todos os que sobre as terras vermelhas nascemos, tantos de nós delas expulsos, tantos de nós por ela ainda a sonhar. Acrescenta-se uma bandeira feita de catanas e foices colada à bandeira de um partido bêbado de sangue e riquezas que só nos fazem envergonhar.

A nação de Njinga Mbande não pariu filhos leais o suficiente para darem continuidade à construção do Império que fez Mutamba. Os primeiros, Assis Júnior ou Pedro da Paixão Franco, cedo tombaram nas teias de uma história feita de traições. Mais tarde viria a não poupar a juventude empenhada no lema “Vamos Descobrir Angola”, maldizendo a mestiçagem de quem pela Mensagem se viu engolido no chão vermelho. Viriato da Cruz ainda tentou lembrar que o sonho era de todos (brancos ou negros) e para todos (negros ou menos brancos), mas não resistiu ao choque frontal com quem havia de voltar num regresso vazio do saber da partilha.

Na construção, Nha Mutúri desmemoriou-se da pele negra, cantando aos surdos poemas de um contratado, legalizando o lugar da humilhação tanto ao seu irmão mais velho, Mário Pinto de Andrade, quanto ao seu irmão caçula, Gentil Viana. E neste colar de contas, os que ficaram tão rapidamente venderam as terras do Dundo quão depressa trocaram a areia branca das praias de Cabinda pelo mar negro das ondas que o enrolam.

É dia 9 de novembro. Escrevo este texto a partir de Portugal. Envolta num cobertor, enxugo as lágrimas e cubro o frio que me greta os lábios e fere as mãos, pedindo ao partido que “me faça um favor”, a mim e aos outros que como eu somam mais um ano de exclusão. Kandengues atrevidos?! Uns na escrita e outros na canção. Vocês aí, no partido, venham então juntar-se-nos nesta carta que eu, expatriada, não sei escrever, pois mesmo que adiada “está chegando a hora, a hora está a chegar”.

Com respeito, perseguindo o sonho que a carta chegue a ti, Angola de gente que sua a camisa sem saber ler.

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