Silenciamento de vozes independentes

A marginalização do Conselho Nacional de Ética na avaliação dos temas para cuja análise foi instituído, como a morte medicamente assistida ou a Inseminação post-mortem, desvaloriza-o, mas também desprestigia os deputados.

O Conselho Nacional de Ética não foi consultado previamente à votação do decreto sobre a morte medicamente assistida (vulgo, “eutanásia”) que esta semana, a escassas horas da dissolução da Assembleia da República, foi por esta debatido e depois votado. De facto, o Conselho nem tão pouco teve conhecimento da versão final do texto; aliás, nem o Conselho nem os cidadãos em geral, uma vez que as alterações ao decreto não estavam disponíveis no site da Assembleia da República até à véspera da votação.

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida foi criado há mais de 30 anos para assessorar os decisores políticos e os legisladores em matérias como a morte medicamente assistida ou a inseminação post-mortem, procedimentos que a evolução científico-tecnológica tornou possíveis. E, todavia, como todos nós sabemos por experiência própria desde que adquirimos consciência de nós mesmos, nem tudo o que se pode se deve. Matérias, como as referidas, entre muitas outras, não podem ser avaliadas apenas no domínio técnico – o que é possível fazer? –, mas também, e sobretudo, no domínio ético – o que se deve fazer? A decisão acerca da utilização destes procedimentos implica a consideração dos diferentes valores em presença, por vezes em conflito. Por isso são questões complexas, sendo igualmente controversas e, como tal, exigindo um mais amplo e profundo debate social.

Portugal foi um dos primeiros países europeus e mundiais a dispor de um Conselho Nacional de Ética, isto é, de um organismo que reúne personalidades de diferentes formações académico-científicas e profissionais, de distintas convicções ético-morais e políticas que apreciam conjuntamente estas matérias, apresentando informação actualizada, reflexão fundamentada e recomendações ponderadas. Além destes relevantes e ímpares aspectos, o Conselho oferece uma apreciação independente que, uma vez solicitada e integrada na proposta legislativa, suprimiria interpretações de politização destas matérias. A marginalização do Conselho Nacional de Ética na avaliação dos temas para cuja análise foi instituído desvaloriza-o, mas também desprestigia os deputados. Ninguém fica a ganhar e quem mais perde é o país que ressente o distanciamento entre a regulamentação estabelecida e as suas necessidades e anseios.

O último pronunciamento do Conselho sobre a designada morte medicamente assistida foi no início de 2020, quando lhe foram presentes cinco projectos de lei, os quais vieram a ser aprovados, pelo Parlamento, na generalidade, tendo baixado à comissão de especialidade em Fevereiro de 2020. Ao longo de um ano e nove meses, os cinco diplomas foram fundidos em um só, este foi aprovado em plenário, enviado para o Presidente da República, deste para o Tribunal Constitucional, de novo para o Parlamento e agora votado, sem que o Conselho Nacional de Ética tivesse sido envolvido no processo.

Outro exemplo recente de uma prática política frequente é o do diploma sobre inseminação post-mortem, votado e aprovado pela Assembleia da República no passado dia 22 de Outubro. O Conselho havia elaborado um parecer em Setembro de 2020 e tinha sido ouvido em audição em Janeiro de 2021. Nos oito meses que se passaram o diploma foi alterado e, nessa sua versão final, aprovado. O Conselho Nacional de Ética não foi então consultado. Vale a pena sublinhar que este Conselho havia emitido um parecer negativo, sendo que outros organismos congéneres, como o próprio Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, também se pronunciaram negativamente. Mesmo assim a vontade política prevaleceu surda, indiferente às vozes dos organismos competentes na matéria, que o próprio poder político criou e aos quais havia solicitado parecer.

Há, pois, dois problemas graves na democraticidade dos processos de tomada de decisão ética que se destacam. Um primeiro é o de o Conselho, quando vem a ser consultado, o ser apenas no início de longos processos legislativos. A orientação da Comissão Europeia para a consultadoria ética é a de que esteja presente ao longo dos processos. Um segundo é o de a consulta ser frequentemente formal, isto é, visar apenas cumprir um requisito, sem que os conteúdos sejam efectivamente considerados e integrados. Pelo contrário, posições consensualizadas através da assimilação dos contributos destes organismos independentes, em vez de decisões unilaterais, corresponderiam mais plenamente às expectativas da sociedade, aproximando o político do cidadão, fazendo decorrer o processo legislativo numa via conciliante em vez de litigante e, por isso também, mais célere.

Uma tácita marginalização e neutralização de organismos instituídos, com as competências necessárias e suficientes para assessorar o desenhar de políticas públicas em matérias específicas, empobrece e inquina mesmo todo o processo.

Numa sociedade diversa e plural, como é hoje a portuguesa, torna-se cada vez mais difícil adoptar uma mesma concepção de bem ou uma idêntica hierarquia de valores. A legitimidade ética da decisão de interesse público radica cada vez mais na lisura e transparência do processo, para o que a intervenção do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida é determinante.

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