As “tentações políticas” de uma dissolução parlamentar com um Governo em plenitude de funções

A demissão do Governo deve ser decretada pelo Presidente da República, com os motivos da dissolução parlamentar: se houve crise para dissolver, também há por certo uma crise que obriga à demissão do Governo, colocando-o em regime de gestão.

1. O país político prepara-se para eleições antecipadas na escolha dos deputados à Assembleia da República o que só é surpresa por ter ocorrido agora, as quais serão marcadas, após a reunião do Conselho de Estado, para 9 ou 16 de janeiro de 2022.

Mesmo sendo esperado este desfecho, não se deve esquecer cautelas a considerar neste tempo político de aceleração que levará o “Autocarro de Portugal” por uma sinuosa estrada polvilhada de escolhos para os seus condutores e, sobretudo, perigosos para os respetivos passageiros, que somos todos nós.

Isto, claro, da perspetiva em que me coloco: a do cidadão passageiro de tal “veículo”, que está preocupado com o Estado de Direito, bem como a preservação do regime político-constitucional que nos rege, o qual não pode ser “entortado” neste período, em que várias “tentações políticas” apoquentarão os seus motoristas.

2. A primeira tentação – como consequência de esta crise nascer de um fracasso orçamental – é a de se agir como se o Orçamento tivesse sido aprovado, sendo certo que, hoje, o regime da execução orçamental tem uma disciplina muito férrea.

Não apenas neste ano financeiro há um Orçamento a ser cumprido, como a partir de 1.1.2022 o mesmo se aplicará em regime de duodécimos.

O pior que poderia suceder seria cair no erro de contornar a “verdade orçamental” através da produção de decretos-leis avulsos, que, aqui e acolá, se submetessem à suspeição de um intuito eleitoralista.

3. A segunda tentação está relacionada com as nomeações para os cargos administrativos que não dependam da Assembleia da República, que entrará em regime de “serviços mínimos”.

Os momentos pré-eleitorais são pródigos em “ajustamentos de lugares”, em função de necessidades de pessoal que, por coincidência, só aparecem nestas alturas.

A maturidade da democracia portuguesa decerto que não tolerará estes comportamentos, os quais se sujeitam como nunca ao olhar inquisidor de uma opinião pública ávida de escândalos.

4. A terceira tentação é a da contratação pública de “última hora”, a qual tem sido objeto, por motivos discutíveis, de perniciosas “flexibilizações”, em nome da omnipresente justificação da pandemia da covid-19.

Tudo com a agravante de esse risco de “facilitação contratual” se colar ao fim do ano orçamental, o qual justifica, tantas vezes, as mais irracionais decisões financeiras de se despender tudo quanto se tinha orçamentado para evitar penalizações futuras por não se ter gastado toda a verba atribuída ao serviço em causa.

5. O que fazer, então, para não cair nestas tentações? Algo que não decorre automaticamente da dissolução parlamentar, mas que deve ser feito paralelamente, até porque já se percebem alguns tristes sinais de que se quer desvalorizar este grave tema: a concomitante demissão do Governo. 

Nos termos do art. 195.º, n.º 1, da CRP, a demissão do Governo – ou seja, a sua subsistência com poderes enfraquecidos em regime de gestão, o que não se confunde com a sua exoneração, que é a mudança dos seus titulares – não é o resultado automático da dissolução, mas de outras causas, como a aprovação de moções de censura ou a rejeição de programas de governo.

O título jurídico mais próximo constante da tipologia daquele art. 195.º da CRP é o do “início da nova legislatura”, o que se revelaria inútil porque tal data, segundo a doutrina constitucional, é o dia da posse dos novos deputados, ficando assim um Governo com poderes plenos durante três meses…

Por isso, a demissão deve ser decretada pelo Presidente da República nos termos do n.º 2 do art. 195.º da CRP, por maioria de razão com os motivos da dissolução parlamentar: se houve crise para dissolver, também há por certo uma crise que obriga à demissão do Governo, colocando-o em regime de gestão.

Outra hipótese mais subtil seria a de ser o próprio Governo, através do primeiro-ministro, a pedir a demissão, com tal magnânimo gesto mostrando que não se pretende governar num contexto de “desequilíbrio democrático”, em que o órgão parlamentar de fiscalização não funciona, e no qual o controlo presidencial é parcial, pois que não abrange todo o setor da Administração Pública, quedando-se a sua intervenção pela assinatura de alguns – não a maioria – dos diplomas governamentais.

Isso acontecerá? A ver vamos. 

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