O Douro e Gaia em frascos de perfume

Vem aí a Feira Vinhos & Sabores, de 16 a 18 de Outubro, organizada pela revista Grandes Escolhas e pelo PÚBLICO. Durante o evento da FIL, no Parque das Nações em Lisboa, há várias provas. Entre as especiais destacamos, a 17, o desafio da Sogevinus para a feitura de um lote de Vinho do Porto branco Kopke 20 anos. E como nos calhou, por estes dias, participar na feitura de um Porto branco Kopke 50 anos, fica aqui o relato a experiência.

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No regresso a casa depois de provas de tudo e mais alguma coisa vem-nos muitas vezes à memória uma velha ideia de enfrascar os aromas identitários de determinadas fatias do país (sim, cada território tem a sua paisagem aromática). Quando tivéssemos saudades do Barroso, de São Jorge, do barrocal algarvio, da serra de São Mamede ou da praia da Arrifana resolvia-se o problema com os frascos em formato de perfume.

Mas se isso não passa de um sonho, a ideia de enfrascar os aromas elementares dos vinhos de uma região vitícola em kits bonitos já nos parece exequível, didáctica, e até interessante como negócio (em modo de presente para os amigos ditos gourmet).

Foi o que nos ocorreu quando, recentemente, nos armámos em master blender de Porto para tentarmos recriar aquele que será a grande novidade no universo dos tawnies: o Porto branco Kopke 50 anos. Tentar é a expressão correcta porque, ao fim de três lotes (e apesar dos progressos), não se chegou lá. Mas lá que tivemos muito gozo em cheirar e provar seis vinhos base que estavam em frascos de perfume, lá isso tivemos. É impressionante o que se aprende num exercício destes. Problema: isto pode tornar-se um vício.

O IVDP criou a nova categoria de Tawny datado de 50 anos (até agora o imite era a categoria 40 anos). E a Kopke, do grupo Sogevinus, que possui um património considerável de vinhos brancos velhos e é a empresa mais antiga de vinho do Porto, criou um blend que vai agora ser submetido à câmara de provadores do IVDP.

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Nestes dias finais de vindima, Carlos Alves, o master blender do grupo para as marcas Kopke, Cálem, Barros e Burmester, sentou jornalistas e escanções numa mesa imponente na Quinta de São Luiz (entre a Régua e o Pinhão). Cada um tinha uma amostra do vinho final (o Kopke 50 anos), seis vinhos base com diferentes idades, uma proveta e um frasco Erlenmeyer (recipiente que serve para harmonizar líquidos). O enólogo deu umas indicações gerais, destacou a necessidade de procurarmos o equilíbrio entre aromas, sabores e frescura e rematou: “Cada um tem três tentativas para chegar ao vinho final.”. Ah, mas sem que tivéssemos autorização de, inicialmente, cheirar e provar o Kopke 50 anos (mauzinho, este Carlos Alves).

A sala onde decorreu o exercício tem um pé direito que não acaba, mas mal se abriram os frascos com os vinhos base o espaço transformou-se numa perfumaria com toda a panóplia de cheiros que encontramos num Tawny velho (aromas de citrinos, frutos secos, vinagrinhos, madeiras exóticas, especiarias e outras coisas indefinidas). Com tanto aroma, só por milagre acertaríamos no vinho testemunha.

Era evidente que entre o frasco A e o frasco E o tempo de vida dos vinhos disparava entre os dez e os 60 anos, pelo que lá se tentou fazer um lote com todos os vinhos. Uma pinga daqui e outra dali (tudo isso vezes seis) e o resultado foi um tiro muito ao lado do porta-aviões.

Na segunda tentativa deixou-se de fora o vinho A (muito cítrico). O lote melhorou qualquer coisa, mas foi mesmo só isso. Desobedecendo às ordens do professor, provou-se o vinho final. Caramba, agora sim, estava no papo. Este vinho só poderia ser feito com as amostras dos três últimos lotes. E assim era – descobriu-se mais tarde , mas qual seria a percentagem certa de cada um no lote? O sarilho estava aqui.

Embora, aromaticamente, o terceiro lote se aproximasse do vinho teste, na boca era outro tiro na água. Faltava-lhe frescura. E por mais que carregássemos com a amostra C, nada melhorava. A dada altura, e quando parecíamos o druida Panoramix a tentar recriar a poção mágica depois de ter levado com um menir na cabeça, desistimos. Não valia a pena, só estávamos a estragar vinhos do Porto que demoraram décadas a chegar até nós.

Quando toda a gente se cansou, Carlos Alves revelou as percentagens certas. Ou seja, a base, com 60%, era o vinho D (48 anos de idade).  Seguia-se o vinho E, com 30% (à volta de 60 anos) e, por fim, o vinho C, com 10% (20 anos). Coisa simples para quem anda nesta vida desde 2007.

No universo do vinho do Porto diz-se que o Porto Vintage é uma dádiva da natureza, enquanto o Tawny é uma dádiva do homem. Do homem que soube fazer e cuidar dos vinhos base, para mais tarde revelar mistério e complexidade por via do lote.

Carlos Alves diz-nos que um master blender necessita de quatro requisitos: bons vinhos base, memória de elefante, ritmo de prova intenso e capacidade de gestão dos stocks das caves. Sobre a qualidade dos vinhos base, não vale a pena dissertar. Já a memória é uma questão determinante porque cada blender é o guardião do perfil de uma determinada marca, sendo que as casas do vinho do Porto fazem gala na manutenção dessa individualidade. E como a Sogevinus tem quatro marcas de Porto, é fácil de imaginar a dificuldade que será fazer os tais lotes personalizados.   

E é por isso que Carlos Alves fala da necessidade do ritmo de prova diário para a feitura dos vinhos das quatro marcas. “Existe arte em todo o processo, mas é uma arte que se adquire com muita dedicação na prova. Provar, provar, provar e provar sempre. Provar na sala de prova e provar regularmente o que temos em stock nas caves”, eis o segredo.

Daqui seguimos para a questão final, que é a gestão de stocks. Quando uma casa cria uma categoria que exige vinhos base com diferentes idades, o master blender tem de conhecer com o rigor de uma folha de Excel os quantitativos desses vinhos nas caves e gerir as vindimas futuras para produções destinadas ao curto, médio e longo prazo, por forma a que o tal perfil não se altere de lote para lote. Se multiplicarmos isso por quatro marcas de vinho do Porto, a vida de Carlos Alves tem que se lhe diga.

Há riscos de enganos nestas matérias? “Engano, engano, não porque a feitura do lote é algo que fazemos com bastante tempo. Não é como essa prova que vocês fizeram. Nós fazemos os lotes, deixamo-los em repouso dias, voltamos a provar e, depois, o vinho final estagia ainda em volume maior durante um mês (em cascaria ou não). Só depois é que engarrafamos. Agora, às vezes tenho dúvidas. E quando isso acontece levo vinho para casa para a minha mulher provar e dar a sua opinião”. Mal saberia o senhor Fernando Nicolau de Almeida que, com o seu Barca Velha, haveria de deixar escola nos processos de decisão final dos vinhos.        

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