Ricardo Trigo: “A maior parte dos políticos não se apercebe das escalas temporais do sistema climático”

Ainda que o Nobel da Física de 2021 possa ajudar a dar visibilidade à crise climática, o geofísico português Ricardo Trigo considera que a grande inércia do sistema climático dificulta essa compreensão por quem decide.

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Ricardo Trigo, geofísico e professor de climatologia DR

Para o geofísico Ricardo Trigo, professor de climatologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, o japonês Syukuro Manabe e o alemão Klaus Hasselmann, vencedores de metade do Prémio Nobel da Física de 2021, foram cruciais no desenvolvimento dos modelos climáticos desde os anos 60 (sobre o trabalho do restante galardoado, o italiano Giorgio Parisi, não está familiarizado). “A física do clima é bastante robusta”, salienta Ricardo Trigo, “porque as leis físicas e químicas que regem a maior parte dos fenómenos e processos essenciais no sistema climático são conhecidas há muitas décadas”.

Explicando em termos simples, o que permitiram compreender os trabalhos dos laureados com o Nobel da Física de 2021 sobre os sistemas físicos complexos, em particular sobre a física do clima?
Os dois laureados com o Prémio Nobel da Física de 2021 na componente dos avanços na modelação climática tiveram um papel essencial desde a década 1960. Syukuro Manabe foi um dos pioneiros no desenvolvimento de modelos de circulação geral, inicialmente só da componente atmosférica, e mais tarde incluindo a componente oceânica. Em 1975 ajudou a desenvolver o primeiro modelo climático capaz de avaliar a evolução global no campo da temperatura, bem com do ciclo hidrológico, em função do aumento dos níveis de dióxido de carbono.

Já o oceanógrafo Klaus Hasselmann, com forte formação em física e matemática, ficou particularmente conhecido por desenvolver modelos de variabilidade climática, onde a componente oceânica é capaz de incorporar mecanismos forçadores estocásticos. Fenómenos aleatórios do sistema oceano-atmosfera (como as ondas do mar e as tempestades) podem ajudar a fazer surgir fenómenos não aleatórios que afectam o globo todo (como o El Niño).

A física do clima é já bastante robusta hoje? Que aspectos principais são ainda difíceis modelar na física do clima?
A física do clima é bastante robusta porque as leis físicas e químicas que regem a maior parte dos fenómenos e processos essenciais no sistema climático são conhecidas há muitas décadas. Por exemplo, o sueco Svante Arrhenius (1859-1927), prémio Nobel da Química em 1903, já tinha chamado a atenção para o efeito do aumento da concentração atmosférica de dióxido de carbono sobre a temperatura da Terra. Também remonta ao início do século XX a teoria, do astrónomo sérvio Milutin Milankovitch (1879-1958), que explica os principais mecanismos geradores da alternância das eras glaciais e períodos interglaciais mais quentes (como a época do Holocénico que vivemos actualmente) resultantes das variações da forma da órbita da Terra, da inclinação e da precessão do eixo da Terra.

O crescimento do conhecimento que temos sobre o clima traduz-se num aumento exponencial de publicações nas últimas décadas e foi necessário criar um fórum internacional que sumarizasse os aspectos essenciais e mais robustos. Foi desta forma que nasceu o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) em 1988, estabelecido pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente.

Os sucessivos relatórios do IPCC apresentam de forma muito clara as áreas onde o conhecimento científico da capacidade de modelar o sistema climático tem evoluído mais, mas também não escondem aquelas onde ainda há problemas. De todos estes, destaco aquele que continua a ser um dos maiores quebra-cabeças que tem a ver com o efeito dos chamados “aerossóis”, partículas pequenas lançadas para a atmosfera por vezes por mecanismos naturais (vulcões, poeira dos desertos, espumas dos oceanos, etc.) mas crescentemente por processos antropogénicos (motores de combustão, queimadas, produção de energia por fontes fósseis, etc.).

Gostaria ainda de salientar que, caso fosse vivo, Edward Lorenz, do MIT, teria sido muito provavelmente contemplado com uma fracção deste Prémio Nobel, dada a sua relevância para as implicações da teoria do caos do ponto de vista da evolução do clima.

Vê este prémio como mais uma chamada de atenção mundial para as mudanças do clima?
Julgo que é mais correcto dar uma resposta com algumas nuances. Por um lado, é inegável que os extremos climáticos que temos visto ocorrer com uma frequência crescente nos últimos anos têm colocado todas as componentes das alterações climáticas (observação, modelação, impactos, mitigação, adaptação) sob atenção da sociedade em geral e dos meios de comunicação em particular.

Por outro lado, os nomes e as contribuições destes dois cientistas são muito conhecidos de quem trabalha em alterações climáticas, particularmente por quem estuda a forma como os modelos climáticos têm vindo a evoluir ao longo dos anos, incorporando novas componentes que não foram possíveis de considerar nos anos 60 e 70 do século passado por falta de capacidade de computação e, em alguns casos, por falta de compreensão suficiente dos processos em causa. Estou a pensar em aspectos essenciais para perceber e modelar o sistema climático que só puderam ser incorporados nos últimos 20 anos, como por exemplo a circulação na estratosfera, todas as componentes da evolução dos gelos flutuantes no mar ou da neve em terra e todo o ciclo vegetativo das plantas.

Está optimista quanto a avanços na luta contra as alterações do clima nos próximos tempos? Ainda vamos a tempo?
Estou moderadamente optimista em relação aos avanços, pois parece ter havido uma melhoria significativa no nível de percepção da sociedade em geral e dos responsáveis políticos em particular relativamente aos problemas associados as alterações climáticas. Muitos dos sectores socioeconómicos mais activos da sociedade, incluindo empresas industriais e financeiras, estão muito mais interessados em contribuir de forma activa para uma mudança de paradigma.

No entanto, tenho de confessar que também estou pessimista no sentido em que a maior parte dos mesmos políticos a que me refiro não percebe as distintas escalas temporais que regem as diferentes componentes do sistema climático. Vamos imaginar o melhor dos cenários: conseguir-se eliminar as emissões de gases com efeito de estufa até ao ano 2050. Na verdade, é uma meta muito difícil de atingir; reconheço que com muito esforço cooperação e inovação tecnológica é teoricamente alcançável. Mas, ao contrário do que muitas vezes é entendido, isso é só uma parte da resolução do problema.

Imaginemos que se consegue atingir esse objectivo. Então é razoável prever que alguns anos depois as temperaturas médias dos oceanos e da atmosfera deixem de aumentar. Mas o arrefecimento necessário para voltar ao clima pré-industrial (ou mesmo ao nosso actual) demorará muitas centenas de anos, pois os gases de efeito estufa têm um tempo médio de vida muito longo e demoram muitas décadas a dissipar.

Como a Terra nessa altura estará muito mais quente (cerca de dois graus Celsius acima do valor médio do período pré-industrial), alguns dos fenómenos extremos climáticos, como as ondas de calor e as tempestades, continuarão a ser mais frequentes e intensas do que são hoje e muito mais do foram no passado recente. Por outro lado, o nível do mar continuará a subir por vários séculos, à medida que o gelo polar derrete num mundo significativamente mais quente. Acho que a maior parte dos políticos e gestores com interesse sincero em ajudar a resolver o problema não se apercebe das escalas temporais envolvidas no sistema climático.

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