O caso da Justiça entrevada

“Não é preciso inventar mais leis nem investir em sistemas sofisticados ou contratar mais polícias, Holmes?”

Watson entrou na sala esbaforido:

- Holmes, temos aqui uma situação inédita. Hoje quem vem pedir a nossa ajuda é uma Comissão de Cidadãos Indignados - CCI. Dizem eles que no seu pequeno país a Justiça se transformou numa anedota, mas que este grupo não lhe acha graça nenhuma.

Sherlock Holmes, sorriu, encheu o fornilho do cachimbo e perguntou: “E onde fica esse singular país?”

Depois de informado do local pediu a Watson que indagasse a data de partida do próximo navio da Thomas Cook que fizesse escala em Lisboa.

Semanas depois Holmes almoçava com Watson.

- Já percebi porque é que a Justiça não funciona nesse país. Já não há pachorra para a aturar.

Para quem tenha muito dinheiro a Justiça enfrenta em primeiro lugar uma rede de influências que pode induzir o Ministério Público (MP), protegido pelo segredo de justiça, a não encontrar matéria incriminatória, mesmo em casos em que qualquer jornalista competente, sem poderes nem equipas de inspectores, consegue deslindar em poucas semanas. Em muitos processos isto é suficiente, se os esquecimentos e atrasos não permitirem ultrapassar o prazo de prescrição.

Pelo contrário o MP pode “condenar” publicamente alguém logo no princípio do processo; basta uma fuga de informação, que nunca é descoberta, para lançar o caso na comunicação social, o que deixa o arguido perante a condenação sumária da opinião pública.

 A garantia da impunidade está dada, pela aplicação da conhecida fórmula da pescadinha com o rabo na boca, visto que o órgão que devia evitar estas coisas, o Conselho Superior do Ministério Publico, é presidido pelos próprios procuradores que devia controlar, que além de ocuparem a presidência e o lugar de vogais estão em maioria no conselho.

Se o  processo for a julgamento, então os criminosos usam o plano B: a possibilidade de ir colocando repetidamente toda a espécie de entraves processuais, provocando o adiamento de alguns anos de qualquer processo.

Uma outra receita é juntar caixotes de papel, amontoando infracções reais ou virtuais, de forma a transformar a mais vulgar situação num “caso complexo”.

No outro extremo temos os crimes dos pequenos ladrões profissionais que assaltam residências lojas e automóveis e que em muitos casos só serão condenados se apanhados em flagrante delito, isto é, estarem a roubar diante de uma câmara ou de uma testemunha corajosa. Estes cidadãos gozam das mesmas garantias de qualquer cidadão normal, o que lhes permite quase sempre a liberdade ao fim de algumas horas, apesar de apresentarem um recheado curriculum de detenções. Isto desmotiva a polícia, que sabendo quem são os criminosos se vê impotente para resolver os problemas.

Para além de permitir proteger os criminosos de colarinho branco o sistema alimenta uma catrefada de advogados de grandes escritórios, que para reforço da sua eficácia são chamados a redigir legislação onde deixam os buracos necessários à fuga dos seus clientes.

Watson estava pasmado perante as conclusões de Holmes.

- Como é possível que isso não seja alterado?

- Aí está o segredo da coisa, já que o MP tem a possibilidade de arruinar a carreira de qualquer político, pelo uso cirúrgico da fuga de informação e a protecção conveniente do segredo de justiça. Assim, os políticos, mesmo perante os maiores atropelos, batem com a mão no peito e publicamente dizem sempre acreditar na Justiça!

- Como pode ser resolvido o problema que indigna os nossos clientes?

Holmes acendeu de novo o cachimbo e puxou de um pequeno papel onde anotara algumas recomendações:

- Para a criminalidade económica e de titulares de cargos públicos:

  • Mudar a composição do Conselho Superior do Ministério Público, de forma a efectivamente poder responsabilizar os procuradores, não só pelo que fazem, como principalmente pelo que se “esquecem” de fazer em tempo útil;
  • Limitar em cada processo o número de requerimentos e impedimentos e, no caso de indeferimento dos mesmos, juntar à sentença de prisão os tempos de atraso provocados por essas diligências;
  • Introduzir de forma bem tipificada nos casos de manifesto enriquecimento ilícito a inversão do ónus da prova  (afinal a ideia simples de que o dinheiro não cai das árvores);
  • Reconhecer que a igualdade dos cidadãos perante a Lei é uma ingénua abstracção, e que um titular dum cargo público é muito mais vulnerável do que um cidadão comum, não devendo ser tratado com a mesma lentidão dos processos normais. No caso de titulares de cargos públicos, bem tipificados, introduzir prazos-limite mais curtos para as diferentes fases dos processos, evitando os perigos de condenações públicas sine die, a grande arma do MP contra o poder político.

- Para a pequena criminalidade:

  • Para indivíduos já condenados e sujeitos a várias detenções por furto, roubo ou uso de processos violentos, alargar de forma progressiva o período de detenção em cada ocorrência, antes da submissão do suspeito à presença dum juiz.

- Só isso? Não é preciso inventar mais leis nem investir em sistemas sofisticados, contratar mais polícias?

- Basta fazer o que escrevi neste papelinho; afinal a Justiça só estará entrevada enquanto o poder político e legislativo não tiver a coragem de adoptar medidas simples, baratas e eficazes. Elementar, meu caro Watson!

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