As últimas horas da tomada de Taloqan

A batalha de Taloqan começou na madrugada de sábado, 10 de Novembro de 2001, e durou quarenta horas. Paulo Moura, enviado especial do PÚBLICO, esteve no Afeganistão entre 29 de Outubro e 25 de Novembro de 2001, acompanhou a batalha e deixou o retrato da conquista na edição impressa de 12 de Novembro

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Entramos em território recém-conquistado. A estrada está coberta de valas, bombas, restos de munições. Há no ar um intenso cheiro a pólvora. No chão, à beira da estrada, está uma bota, numa poça de sangue vermelho vivo, provavelmente com um pedaço de pé dentro. De súbito, ao chegar a uma ponte, os soldados atiram-se para o chão. De um monte em frente, alguém está a disparar metralhadoras sobre nós. Todos apontam as armas para lá. Os camiões tentam inverter a marcha, há correrias, gera-se o pânico. De onde vêm os tiros? Afinal, há alguns resistentes taliban. São árabes, paquistaneses, tchetchenos”, grita um comandante para um walkie-talkie. Os árabes nunca se rendem. Deixam-se ficar para trás, não se importam de morrer. Temos de os matar”, explica-me. Lá de cima, os “árabes” continuam a disparar e de repente vejo-os, dois homens, a correr, de armas em riste. São disparados canhões, metralhadoras, uma chuva de munições, para acabar com os dois renitentes. Até que eles se calam.

Continuamos, mas à frente surgem de novo snipers nas montanhas. A caravana é detida naquele ponto, quem já passou continua a marcha sobre Taloqan. Ficamos parados, a disparar sobre uns taliban teimosos mas então ouvem-se disparos atrás de nós. Eles estão dos dois lados, é uma emboscada!”, grita alguém. Uns dez camiões e umas centenas de homens ficaram entre as duas linhas de fogo. O tiroteio dura meia hora. Depois, é a ordem para avançar.

Noite

Era já noite quando entrámos em Taloqan. Dos dois lados da estrada, centenas de pessoas aplaudiam os libertadores. A certa altura enchiam a estrada, obrigavam os camiões a parar, abraçavam os soldados.

Chegámos à avenida principal de Taloqan, Sarek-kir. Depois à praça central, no meio da qual havia uma espécie de guarita para o sinaleiro. O comandante-geral das tropas, o general Duoudkhan, fez um discurso. Mas não havia muita gente na praça. Apenas soldados. A população estava provavelmente em casa, cheia de medo. Toda a euforia de algumas horas atrás desaparecera. Assim às escuras, com os soldados a deambular à volta da guarita do sinaleiro, a praça central de Taloqan recém-libertada era afinal um lugar triste. Talvez porque a libertação veio tarde de mais, ou porque já ninguém acreditava em libertações, ou porque não havia glória possível numa guerra que durava há demasiado tempo (Taloqan é uma palavra uzbeque que significa poça de sangue).

O cortejo de um casamento, com os noivos nos seus complicados trajes e um bando de convidados com ar comprometido, dispersava finalmente, pelas ruas adjacentes da praça. Entraram numa casa, para o final da festa, que não foi interrompida pelos combates. Começou ainda sob o domínio taliban, e terminou na cidade libertada.

Grupos de homens barbudos acercaram-se de mim. Amanhã vamos todos ao barbeiro cortar isto” diziam. Estavam contentes. “É incrível. Há uma hora os taliban estavam aqui.” Outros contaram-me como os taliban torturavam e executavam pessoas, como os roubavam, como maltratavam as mulheres.

Uns vinte por cento da população da cidade fugiram com os taliban, não tinham outro remédio”, disse-me Chessik, 17 anos. Fui a casa dele. O pai, Raussuzin, 60 anos, era professor de religião na escola secundária. Estava a ouvir uma emissora iraniana no rádio portátil que tinha tido escondido em casa. Foi com esse rádio que soube do atentado ao World Trade Center. Um atentado terrorista. O povo do Afeganistão condena o terrorismo, o Islão não tem nada a ver com o terrorismo nem com as acções dos taliban.” Na parede da sala onde me ofereceu um chá, havia um retrato de Atik, o irmão de Chassik que aos 21 anos foi morto pelos taliban. O Islão é uma religião evoluída”, disse ainda o professor.

Pouco depois, perguntei a dois homens na rua se sabiam quem era Bin Laden. Não, nunca ouvimos falar. Não somos pessoas muito cultas”.

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