Colocar a formação das elites no debate público

O Plano de Recuperação e Resiliência pode representar a oportunidade para criar a tão necessária formação de elites públicas.

Para nos entendermos, vou usar o termo elites para designar as pessoas com poder de decisão e de influência política e económica. Dezenas de business schools, ricas e prestigiadas, em Portugal e no resto do mundo, preparam as elites do setor privado, formadas para servir os interesses das grandes empresas. Contrariamente à maioria dos países ocidentais, não existe em Portugal nenhuma formação de excelência para elites que sirvam o interesse público, ou seja, que estejam ao serviço de todos os membros da sociedade, sendo necessário para tal sair da lógica de mercado e da procura do lucro. Face aos desafios absolutamente vitais do momento presente – realizar a transição ecológica em tempo útil, conseguir uma transição digital socialmente inclusiva e preservar a democracia – esta falha é dramática.

Distinguir interesses privados e interesse público - ilustrações

Atualmente, mais de 2.750 tratados protegem os interesses dos investidores internacionais ao darem-lhes a possibilidade de processarem estados nacionais se considerarem que estes tomaram medidas que violam os seus interesses económicos, recorrendo a tribunais privados através do mecanismo de “Solução de Controvérsia Investidor-Estado” (ISDS). Por exemplo, a multinacional sueca Vatenfall processou a Alemanha por ter regulamentado a poluição da água; a francesa Veolia processou o Egito por ter aumentado o salário mínimo; vários escritórios internacionais de advocacia consideram processar, com base nesses tratados, diversos estados pelas perdas sofridas por causa das medidas sanitárias tomadas contra a covid-19.

Em 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu tornar ilegais esses acordos de proteção para os investimentos intraeuropeus, por contornarem os tribunais da UE e retirarem margens de manobra aos estados para proteger o interesse público, mas vários lóbis empresariais e alguns estados-membros, entre os quais Portugal, estão a fazer pressão para que se encontre um dispositivo que devolva aos investidores a proteção fornecida por esses tratados.

O poder exercido hoje pelas multinacionais é tal que já não existe uma esfera pública (política) distinta da esfera privada (económica); a interligação é profunda e perversa. Essas empresas são maioritariamente geridas de modo a maximizar o valor para os acionistas, e os sistemas contabilísticos são concebidos para calcular a criação de valor financeiro, sem contabilizar a destruição de valor ambiental e social. Os estados, que concorrem uns contra os outros para atrair os investimentos, têm de restringir as medidas de luta contra as alterações climáticas, as desigualdades sociais, a evasão fiscal – fenómenos principalmente criados por essas empresas. Com efeito, 80% do comércio mundial consiste em transações intraempresas, com preços administrados, fixados por elas. Um dos desafios das elites públicas é lutar contra esta privatização do mundo, contra a inversão da relação entre o público e o privado, estando agora o primeiro subordinado ao segundo.

A formação das elites públicas

Em 1945, os deputados comunistas do governo do General de Gaulle criaram a École Nationale d’Administration – ENA – para formar os altos quadros da administração pública francesa. Os objetivos eram os de servir o interesse público e de evitar a reprodução das elites existentes e o nepotismo. Face à crise dos Coletes Amarelos, que denunciaram a desconexão das elites face à realidade vivida pelos franceses, e às críticas de que há muito vinha sendo objeto, Emanuel Macron extinguiu a ENA. Mas, num momento em que o futuro é iminentemente incerto e precisa de ser inventado, nenhum país pode abdicar de uma formação de elites públicas. Há cerca de dois anos, elaborei e partilhei com colegas académicos uma proposta para a criação, em Portugal, de uma formação de excelência para o serviço público. Não se pode ter dirigentes cuja incumbência se limita a adaptar-se às circunstâncias externas.

O Institut National du Service Public irá substituir a ENA a partir de janeiro 2022. Dele se espera que consiga atrair os melhores jovens para o serviço público, com a maior diversidade social possível. Os objetivos são os de fortalecer a formação inicial e a formação contínua dos dirigentes públicos, de aumentar a sua cultura comum para promover a comunicação interministerial e interdisciplinar, e de estreitar os laços entre o mundo académico e as políticas públicas. Os valores republicanos terão um peso reforçado no programa desta formação – “o estado é a ideia ética em ato”, disse Hegel.

Mas muitas questões suscitam controvérsia, e estão atualmente em debate público. Por exemplo, para atrair os melhores jovens, deve ou não diminuir-se o fosso entre os salários dos dirigentes públicos e privados? Deve ou não facilitar-se a passagem entre responsabilidades públicas e privadas? Como aumentar a margem de manobra dos estados nacionais face ao poder das multinacionais e ao colete de força das regulações europeias?

A questão do New Public Management - NPM, ou seja, a aplicação dos métodos de gestão do setor privado ao setor público, métodos adotados pelos serviços públicos dos países ocidentais nas últimas décadas, é particularmente polémica. O propósito do NPM era o de sujeitar toda a sociedade a uma lógica organizacional única, baseada em critérios de eficiência. No seu fundamento, está a crença de que tudo pode ser calculado, o que levou a maioria dos serviços públicos a concentrar-se em indicadores quantificados, descurando os valores que não são mensuráveis. Mas há quem defenda que, confrontados hoje com riscos climáticos e sociais colossais, a crença de que o mundo pode ser gerido como uma empresa tem de ser abandonada.

Gostaria de ver estas questões debatidas também em Portugal. O Plano de Recuperação e Resiliência pode representar a oportunidade para criar a tão necessária formação de elites públicas. Trata-se, hoje, de reunir as condições para assumir responsabilidades e traçar, coletivamente, um futuro desejável.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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