Ainda se fala e escreve português neste país?

A autoproclamada intelectualidade continua a guerrear o acordo ortográfico, mas fica indiferente perante a acelerada perversão da língua…

Estranho povo este! Ou melhor: extravagantes classes dirigentes as deste país! Fazem discursos patrioteiros sem fim, sobretudo quando conversam com estrangeiros. Portugal é o mais antigo Estado da Europa, com as fronteiras mais antigas, deu “novos mundo ao Mundo” e por aí adiante, por aí adiante, até chegarem à língua que é a terceira europeia mais falada no mundo!…

Só que esta língua “mais falada no hemisfério sul” é desde há anos motivo de uma guerrilha largamente estéril. E isto porque fetichistas da precedente ortografia recusam aceitar a que foi aprovada oficialmente há 30 anos. Seja embora a ortografia o resultado de mera convenção, de uma espécie de código gráfico. Basta conhecer as diferentes línguas românicas para saber que os mesmos fonemas são ortografados de maneiras diferentes de uma língua para outra. E que a etimologia só não explica todas estas diferentes variantes.

Uma autoproclamada “elite” persiste, no entanto, em escrever na antiga ortografia marca para ela de pertença à “boa sociedade”, preferindo esquecer (ou ignorar) que esta antiga ortografia é fruto de acordos assinados em 1911, 1943, 1945 e 1971. Mas a dita “elite” não quer ver isso, quando a simples consulta de uma publicação (livro, jornal, cartaz) de fins do século XIX põe em evidência a evolução ortográfica (e lexicográfica, bem entendido) da língua portuguesa.

Curiosamente, esta mesma autoproclamada “elite” purista não diz nada da avassaladora invasão da terminologia inglesa na versão estado-unidense. Não só adotando termos recentes para os quais as autoridades em matéria de linguística não acharam por bem criar adaptações à língua portuguesa (caso do inglês “football” para o português “futebol”, por exemplo). Mas, o que é ainda muito mais chocante, substituindo cada vez mais termos portugueses precisos por termos ingleses (“em linha” por “on line”, “sítio” por “site”, “[tele]carregamento” por “download”, “classificação” por “ranking”, “notação” por “rating”, “vale” por “voucher”,…).

É claro que existem em todas línguas estrangeiras termos dificilmente traduzíveis porque exprimem uma subtileza, uma especificidade. Pelo que é perfeitamente compreensível que tenham que se utilizar, até porque não vivemos em circuito fechado, longe de mundos sociais e culturais de que somos geograficamente próximos. Mas de lá a praticar uma permanente degenerescência da língua por razões de ignorância ou de afirmação de um pretenso cosmopolitismo linguístico oco…

Outra degenerescência evidente da língua é o “ponto” inglês que substitui cada vez mais a “vírgula” na indicação dos números decimais. Em todas as línguas da Europa ocidental se diz “vírgula”, só o inglês faz exceção a este princípio: razão sobeja para que os analfabetos pedantes digam “ponto”.

É verdade que uma das lamentáveis constatações que se podem fazer é que esta falta de respeito pela língua é largamente praticada pelas próprias mais altas autoridades e instituições do Estado, como pelos média dominantes em termos de informação como de cultura. E outra triste constatação é a da ausência do mais elementar dicionário da língua portuguesa nas casas de família ou nas empresas. E quando, por sorte, existe, não é frequente vê-lo consultar quando uma dúvida se apresenta, até porque a dúvida surge raramente no espírito da grande maioria dos cidadãos. Sem falar sequer da rápida consulta em linha que passou a ser possível há uns bons dois decénios. Diligências que supõem esforço e são pois consideradas como cansativas!

Na realidade, na “boa tradição” nacional, “é tudo igual ao litro”, diz “o bom povo português” na sua natural sabedoria intuitiva. O que, no fim de contas, traduz bem a falta de rigor e de exigência que grassa num país desprovido de uma instituição com a autoridade da italiana Accademia della Crusca, da Académie Française ou da Real Academia Española. E numa sociedade onde o individualismo generalizado se afirma no não respeito de regras e convenções legalmente instituídas. À proclamação de Júlio César que dizia “há nos confins da Ibéria um povo que não se governa nem se deixa governar”, conviria agora acrescentar: incapaz até de se entender sobre a sua língua comum e nesta língua comum!…

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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