Acordai

O que o relatório do IPCC nos diz é que a estratégia geral de fazer apenas os mínimos tem de acabar. O abandono dos combustíveis fósseis, das grandes cadeias de produção e mesmo do crescimento económico deixa de ser uma estratégia ou uma opção e passa a ser uma obrigação vital para responder aos grandes desafios que se colocarão a todos os níveis.

O novo relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), o maior exercício de ciência climática mundial, é taxativo, direto, e vem confirmar o pior dos cenários: o mundo como o conhecemos vai mudar, muito e em breve, independentemente das nossas ações. Ou, nas palavras da melhor ciência climática, cada vez mais alarmada: “the world must face up to this (new) reality and prepare for the onslaught.” É o tal facto que antes era alarmista, depois se tornou provável, e agora é ciência.

Assim, vivemos o virar da página da história. Já não podemos (nem devemos) salvar este mundo, esta maneira de viver insustentável e dependente de tanta e tão continuada destruição humana e ecológica. Mas o que isto significa realmente é o fim desta linha – não o fim da linha. Já brotam e se perscrutam muitos outros possíveis – esses sim, que podemos e devemos resgatar e trabalhar, e para os quais há muito a fazer.

Acordai.

São boas notícias: essa reinvenção, essa “nova vida”, é não apenas urgente, mas desejável. E pode ser bem melhor, mais saudável, democrática, sustentável, humana e conectada do que a atual (alienada, opressiva e superficial). Pode mesmo ser uma nova estratégia para fazer frente a um futuro incerto e que cada vez mais nos vai requerer autonomia, colaboração e proximidade para funcionar.

O “já não há nada a fazer” do IPCC só quer dizer que já não há nada a fazer para salvar este modo de vida. Mas, na verdade, há muito a fazer: para sonhar e realizar aquela que decidamos, juntos, ser a sua alternativa. Para ser um processo legítimo e eficaz, este terá de fazer parte de uma visão e de uma estratégia concertada, legitimada pela participação alargada das populações, e apoiada por recursos, coragem e incentivos claros e concretos (i.e., não ser apenas uma opção romântica de mudança de vida para os poucos que têm o privilégio de o poder fazer).

Só quando todos se sentirem apoiados e convidados a criar as suas próprias estratégias e alternativas, conseguiremos tornar-nos capazes de, e decididos a, realizar essa utopia: podendo valorizar e apoiar quem está perto e produz em respeito e colaboração com a natureza; comprar (muito) menos; colaborar com vizinhos e aumentar as trocas e a reutilização; participar em movimentos e associações locais, políticos ou não, de resistência, de autonomia, de regeneração, etc., que nos interessem; cultivar a interdependência, a solidariedade, a confiança – elementos essenciais para reforçar comunidades e torná-las vivas e funcionais; descobrir novos métodos e tecnologias (especialmente tecnologias baixas, i.e., acessíveis, replicáveis e reparáveis localmente); experimentar – usando conhecimentos antigos e aprendizagens recentes – com tudo desde marcenaria ao ferro, do barro às vides, e com agriculturas de regeneração e de menor trabalho intensivo, que nos permitam uma abundância sóbria, rios limpos e a água a correr; diminuir, de forma gradual e agradável, a nossa pegada ecológica – seja plantando, melhorando a eficiência energética, repensando as férias e os programas de fim-de-semana, os presentes, os locais de compras do dia-a-dia… E também cultivar o tempo em silêncio, sem ter que fazer nada, só estar perto da natureza e senti-la, reconectar com ela, desfrutar em total presença das crianças, dos mais velhos e daqueles que mais queremos, ouvir o nosso corpo, dançar, rir, passear a pé… Dar e receber amor. Viver estas pequenas coisas, com sentido, sem ter que comprar nada, sem ter que fazer nada. Basicamente, sem precisar de gastar recursos para se ser humano neste planeta.

Parece irrealista?

Acordai.

Quão real(ista), plena e equilibrada é a maneira como vivemos hoje? Já sabemos que não podemos continuar assim. Deixemos, finalmente e por favor, contra a ciência e o bom senso, de continuar a empurrar “soluções” e estratégias sempre e só em torno do crescimento económico a qualquer custo… Porque “ foi sempre assim”, porque “não pode ser de outro modo”. Porque “ai aguenta, aguenta”...

As tais neutralidades carbónicas em 2050, o tal crescimento verde, os carros elétricos, a transição energética e as gigantescas e devastadoras minas de lítio e outros metais que permitiriam tudo isto, tudo aquilo em que andámos a querer “acreditar” (e a criticar) – não são soluções. São desculpas ou ilusões de quem não está disposto a repensar e mudar o seu modo de vida, e prefere continuar a negar o que a ciência, a lógica e o coração nos anunciam. Mas essa realidade é cada vez mais concreta, e a ciência avisa-nos com toda a seriedade que a distopia em que vivemos está a chegar ao fim.

Acordai.

O que o relatório do IPCC nos diz é que a estratégia geral de fazer apenas os mínimos tem de acabar. Que há que preparar-nos para os choques profundos que o nosso sistema irá inevitavelmente sofrer. O abandono dos combustíveis fósseis, das grandes cadeias de produção e mesmo do crescimento económico (verde ou não) deixa de ser uma estratégia ou uma opção e passa a ser uma obrigação vital para responder aos grandes desafios que se colocarão a todos os níveis: desde a produção de alimentos, à mobilidade, e nas diferentes formas que teremos de encontrar para assegurar a nossa paz, novo conforto e mesmo sobrevivência enquanto sociedade.

A maneira como vivemos atualmente acabou, “quer queiramos, quer não”; quer acreditemos em crescimentos e energias verdes ou não; quer nos preocupemos com o futuro ou não. Quer tenhamos filhos, ou netos, ou não. Quer mudemos agora ou não. Quanto mais cedo percebermos isto, mais cedo podemos começar a exigir – e a preparar – o futuro próximo.

Acordai.

Mas mais uma vez, numa altura em que precisamos de repensar tudo, de nos reinventar e de nos preparar para os enormes choques e desafios que aí vêm, damo-nos conta, com cada vez mais angústia, que os nossos governantes e o nosso sistema não são capazes, não estão preparados nem dispostos a mudar. Porque o sistema foi sendo desenhado com um objetivo totalmente diferente, contrário ao necessário decrescimento material e económico, à sobriedade e à transição para baixas tecnologias que vamos ter de abraçar.

Precisamos de outras estratégias, de estruturas de poder alternativas, de lutar por poder real para por um lado parar a destruição anunciada nos distópicos planos de recuperação económica, e por outro para começar a experimentar e crescer juntos, em comunidade, em sobriedade, em direção a uma nova realidade.

Tudo isto, mesmo se – especialmente se – os nossos governos não o querem ou sabem fazer.

Acordai.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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