A “marcilly season

Marcelo não tem maneira de dizer em público o que diz em privado. Aliás, porque o faria? É essa duplicidade, ou mesmo essa multiplicidade, que lhe alimenta o ego ao olhar-se ao espelho pela manhã. Temos de o aceitar.

Chegou Agosto, com o seu habitual cortejo de surpresas e disparates. E chegou em grande, até na meteorologia: no dia 1, o país acordou inesperadamente coberto de nuvens, com chuva em várias regiões. Que belo prenúncio para este mês! Entretanto, o debate do absoluto disparate científico que é a imposição de vacinas em crianças e jovens promete projectar o nosso Verão para níveis impensáveis de absurdo. Este ano, em vez de incêndios, lavram as chamas de afirmações profundas e dramáticas – porém desprovidas de qualquer bom senso. Que tragédia para a Medicina, que festim para os media! Mas este ano, mais do que nos anteriores, a silly season pode ser interpretada como o corolário de algo maior, algo que já vem do passado e perdura no tempo: a marcillly season.

Não é segredo para ninguém que o nosso Presidente adoptou um estilo hiper-interventivo e popularucho, por vezes a resvalar para o truão. O célebre telefonema em directo para a Cristina Ferreira pareceu algo mais do que um gesto de amigo: dir-se-ia o reconhecimento público da existência de uma alma gémea. E, desde o início da pandemia, as tiradas marcilly têm-se acumulado em ritmo crescente, o que não espanta: a uma certa tendência para a hipocondria e ao gosto pelo exibicionismo, juntou-se-lhe agora o foco da voracidade mediática, que tudo busca e amplifica, desde o relevante ao anedótico. Como não recordar, logo no início, a quarentena auto-imposta, “para dar o exemplo”, com as caricatas declarações à varanda? Como esquecer a famosa sequência de sucessivos testes covid, alternando entre positivos e negativos? Como ignorar as declarações, avulsas mas insistentes, profetizando o fim próximo da pandemia? Ou a inexplicável cruzada que agora empreendeu pela vacinação de crianças? No fundo, tudo isso é espuma mediática; “marcillyness” que o tempo dissipará. Mais importantes, mais profundas, e talvez mais preocupantes, foram as suas declarações na semana de 17 de Junho, afirmando que “precisamos de uma narrativa diferente”. 

Na verdade, a sugestão de que há uma “narrativa” sobreposta a uma “realidade” (supostamente diferente) é do domínio daquilo que se tem convencionado apelidar de “negacionismo”. Todos sabemos que qualquer realidade pode ser “narrada” de diferentes maneiras. Mas, se há coisa que esta pandemia acentuou, foi a tendência para a uniformização forçada dos discursos e das ideias por parte dos “ditadores de opinião” bem pensantes, tantos deles ao serviço das autoridades, no prolongamento aliás das ditaduras do “politicamente correcto”. Para merecer o rótulo de “negacionista”, não é preciso discordar, basta questionar. Nestes tempos de tentativas notórias para limitar a liberdade de expressão, a afirmação do Presidente resulta irónica, senão mesmo cínica: se eu utilizar algumas vezes na minha página do Facebook a palavra “narrativa” com o mesmo sentido com que Marcelo a usou, candidato-me a ser advertido ou a ficar com a conta bloqueada. Portanto, para o grande público, ouvir um Presidente que cultiva um discurso “covidista” falar criticamente de uma suposta “narrativa” é uma surpresa, um absurdo, um contra-senso – pelo menos à primeira vista.

Acontece que a realidade é de facto outra, bem diferente da “narrativa”. A realidade é que Marcelo tem há muitos anos, e talvez desde sempre, um discurso público diferente do discurso privado, acerca das coisas, das pessoas, das realidades. E, quanto à pandemia, a realidade é que Marcelo há muito advoga, em privado, a ideia de que temos de aceitar a pandemia, e aceitá-la tranquilamente, filosoficamente, exactamente do mesmo modo como temos de aceitar tudo aquilo que nos ultrapassa. “Temos de aceitar.” Não, não é fatalismo, é a noção, que Marcelo tem, de que a pandemia existe mas não é tão grande nem tão grave como outras pandemias do passado – às quais sobrevivemos. É a noção, que Marcelo afirma em privado, de que os técnicos, os médicos, os cientistas, “não se entendem”, dizem uma coisa hoje e outra coisa amanhã, desmentem-se uns aos outros, não têm certezas de coisa alguma – embora afirmem o contrário. É a noção, que a Marcelo preocupa, de que o excessivo foco na luta contra a pandemia se transformou progressivamente num garrote para o país, num abcesso cuja cura matará mais do que doença. É a noção, que Marcelo gostaria de afirmar em público, de que a vida vale mais do que a morte – mas como dizer isto sem parecer irremediavelmente kitsch, ou católico, ou ambos? Marcelo sabe que não o pode fazer e, em público, continua a alimentar a “narrativa” oficial. Haverá alguém com coragem para a questionar?

Não nos iludamos: a marcilly season está aí para durar, tal como a “narrativa”. Temos de a aceitar, diria talvez Marcelo. Prestidigitadores consumados, como Costa, se encarregarão de, sem desmentir publicamente a “narrativa”, ordenar impudentemente desconfinamentos quando a matriz está pior do que quando ordenaram confinamentos. E justificar-se-ão com as vacinas – as tais que não evitam o que eles próprios prometeram que iriam evitar. E falarão das medidas do passado – impossíveis de relacionar com qualquer melhoria ou pioria. E prometerão o contrário do que dirão que prometeram. Quanto maior for o emaranhado de contradições, mais fácil será justificar o injustificável. As malhas que a narrativa tece, num país onde a verdade jaz morta e apodrece... Sim, Marcelo não tem maneira de dizer em público o que diz em privado. Aliás, porque o faria? É essa duplicidade, ou mesmo essa multiplicidade, que lhe alimenta o ego ao olhar-se ao espelho pela manhã. Temos de o aceitar.

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