Necessidades e Salvaguarda – Discussão pública e a arte do descompromisso. Uma opinião

O processo adoptado desde 2015 pela Câmara de Lisboa ou pelo vereador Sá Fernandes não era o correcto. Não fica bem o descompromisso, mas sim assumir o erro. Há que recomeçar com base nos contributos dos especialistas e cidadãos interessados na defesa da Tapada.

Terminou no dia 31 último a discussão pública relativa ao anteplano de salvaguarda da Tapada das Necessidades. Estando previsto o início de intervenções (obras) por parte de uma entidade privada no final deste Verão, um conjunto de cerca de 12.000 cidadãos assinou uma petição pública contra o processo em curso. Um processo da Câmara Municipal de Lisboa (CML) que teve um início formal em 2015 com um caderno de encargos (CE), seguido de concurso público cuja empresa vencedora, apesar de não cumprir o CE, obteve da CML o aval para celebrar um contrato de concessão e elaborar um projecto de arquitectura referente a diversas construções, nomeadamente um restaurante com uma cave no centro histórico da Tapada. Presume-se que o local foi escolhido por ter vistas melhores. Houve licenciamento por parte da CML com votações. Não foi coisa ligeira. A petição está em discussão na Assembleia da República (AR). Mas, para além da petição, muitas outras iniciativas públicas de cidadãos, nomeadamente de especialistas, têm sido promovidas pelos cidadãos em defesa da Tapada.

Com efeito, a concessão é ambiciosa e tinha como objectivo promover uma grande animação na Tapada com restaurante, pistas para desporto, anfiteatro para 200 pessoas, quiosque com esplanada, parque infantil e o intuito de promover eventos especiais. O CE permitia que a Tapada estivesse aberta até à 1h da manhã. As instalações sanitárias talvez sejam uma das poucas boas intenções previstas. Seria a promoção de uma espécie de animado parque de eventos, com retorno garantido, num património cultural histórico único a nível nacional sem consideração pela envolvente urbana. Num jardim com um contínuo histórico e uma importância social a preservar e a cuidar de um modo sábio e cuidadoso.

O processo de licenciamento do projecto envolveu um elevado número de pareceres da CML e da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), votações na Assembleia Municipal e intervenções na câmara. Reuni um conjunto de mais de 150 páginas que permitem conhecer intervenientes, actuações e compromissos. Em fase avançada do processo surgiu a imposição, tipo “salva-vidas”, de um plano de salvaguarda cuja elaboração deveria, obviamente, ter sido antes do CE, mas só foi desencadeada (admite-se) em 2019. A actuação dos cidadãos teve alguns efeitos e a execução do projecto foi suspensa e é apresentado em 1 de junho de 2021 o designado ante-plano de salvaguarda, seguido de um período de discussão pública até 31 de julho. Discussão não estruturada e um pouco estranha através de um email da CML e, finalmente, de um debate público não presencial marcado inopinadamente para o dia 30 de julho, uma sexta-feira antes de agosto.

Da discussão e do debate o autor concluiu algo de novo: a arte do descompromisso público. Exemplifico:

  • Após seis anos de processo e de decisões e actos administrativos que ocorreram, o presidente da CML surge em junho de 2021 com uma postura de compreensão, neutralidade e até de uma certa candura, desvalorizando as decisões da CML e as intervenções públicas em reuniões. Uma senhora candidata à junta de freguesia da Estrela explica que é assim atendendo à grande autonomia dos vereadores. Neste caso, o vereador Sá Fernandes não vai continuar e será que é ele o único responsável? Sugiro que passemos a votar e a responsabilizar os vereadores. Ou talvez seja o erro da “fuga para o indivíduo”, como chama N. Luhmann (1997). Talvez seja o “sistema autónomo” de decisão da CML. A ter em conta.
  • A Ficha Técnica identifica a coordenação da CML e os nomes dos consultores. O documento tem uma parte de índole científica e histórica (com muita qualidade) e outra parte é uma proposta de acção que dá cobertura ao decidido anteriormente no processo de concessão. Não se sabe quem é o autor de cada uma das partes. É um texto redigido com cuidado: propõe-se um horário “maioritariamente diurno”, o que é exactamente a infeliz proposta do CE, mas agora apresentada com argúcia. No debate e na discussão nenhum autor ou coordenador veio justificar ou defender o anteplano. No debate não esteve presente nenhum representante dos respectivos autores ou da CML. Foi, assim, um debate só entre cidadãos preocupados e interessados e coordenado por um peticionário. Qual será o efeito deste debate, de uma Carta Aberta (PÚBLICO, 4/8/21) assinada por 201 cidadãos e das opiniões e pareceres (nomeadamente o parecer da Associação dos Jardins Históricos coordenado pela professora Cristina Castel-Branco) enviados para o referido email da CML?
  • O Ministério dos Negócios Estrangeiros está no Palácio das Necessidades e tem a seu cargo jardins relevantes. O Ministério da Defesa Nacional ocupou uma parte da Tapada e já pretendeu mais área (pretensão negada pela procuradoria-Geral na década de 90, mas em que o ministro Fernando Nogueira assumiu bem a responsabilidade). Pretender que a Tapada é um mero problema local ou autárquico e não nacional, como afirmou a senhora deputada presidente da Comissão da AR, é uma desresponsabilização de um património nacional.

É tempo de escolher um modelo de gestão e económico para a Tapada. A renda do aluguer definida no contrato de concessão assinado pelo vereador Sá Fernandes não seria suficiente para manter um bom jardineiro especializado. Algo estaria então na “face oculta da Lua”. Na minha opinião, o processo adoptado desde 2015 pela CML ou pelo vereador Sá Fernandes não era o correcto. Não fica bem o descompromisso, mas sim assumir o erro. Há que recomeçar com base nos contributos dos especialistas e cidadãos interessados na defesa da Tapada. A versão final do plano de salvaguarda pode ser o modo airoso de encontrar o caminho certo. Mas fica o exemplo de uma valorosa acção cívica. É a minha opinião.

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