Cuba: dias de diálogo ou de ira?

Os dados estão lançados: ou os dirigentes cubanos juntam ao bloqueio outro bloqueio cívico ou procuram por todos os meios um diálogo que conduza a saídas nas quais a população se reveja e aceite. Não há terceira via.

Cuba vive dias difíceis. Seria bom que se não transformassem em dias de ira. Que os dias difíceis fossem, de uma ponta à outra da ilha, de esperança. Em Cuba, volta a colocar-se com vigor em cima da mesa a questão aparentemente contraditória entre o exercício dos direitos civis individuais e o dos direitos sociais. A questão pode ser enunciada deste modo: um regime que organiza a produção económica no sentido de satisfazer as necessidades populares está, por esse facto, isento de garantir à população o direito de se manifestar? Acrescentando a esta situação outra gravíssima: mesmo sofrendo um bloqueio por parte do grande Império, que impede o país de acesso a tantos produtos?

Uma parte da população cubana saiu à rua para protestar contra as condições de vida. Fez aquilo que é absolutamente normal em Portugal. O PCP, a CGTP e os outros sindicatos fazem-no a toda a hora. E ainda bem para os trabalhadores. Em geral, a polícia impede que o seu exercício cívico/político seja obstaculizado por quem quer que seja. O patronato não pode mobilizar trabalhadores contra os manifestantes ou os grevistas. Nem o Estado. Nem os partidos.

Diz o Presidente cubano, e com razão, que o país enfrenta o bloqueio asfixiante e que os inimigos da revolução se aproveitam da situação e outros estão confundidos. É quase certo que é assim, mas, apesar disso, persiste o problema. Como se resolve, então?

Como já há experiência internacional acerca do que sucedeu nos países do “socialismo real”, os dados estão lançados; ou os dirigentes cubanos juntam ao bloqueio outro bloqueio cívico ou procuram por todos os meios um diálogo que conduza a saídas nas quais a população se reveja e aceite. Não há terceira via.

Cuba conseguiu êxitos assinaláveis na Educação, Saúde abalada com a covid, Desporto, Ciência, tendo em conta o bloqueio e o grau de desenvolvimento de onde partiu o país. E se, neste momento, há quem não se conforme e queira fazer ouvir o seu protesto, mesmo que confundido ou confuso ou discordando de medidas do governo, a levar à letra a declaração do Presidente Miguel Díaz-Canel Bermúdez​, tais circunstâncias são impeditivas desses cidadãos exercerem esses direitos? Esta é a questão. Só a Blimunda do Saramago conseguia ler o íntimo dos outros e saber das verdadeiras intenções, mas isso era antes de tomar o pequeno-almoço e no imaginário riquíssimo do nosso Nobel.

Pergunta-se: só podem manifestar-se os que estão esclarecidos, os que não têm dúvidas, os que estão de acordo com as medidas do governo? Esse direito indiscutível não deve bloquear o outro direito – o daqueles confusos ou confundidos, seguros ou inseguros, certos ou errados, fortes ou fracos que se opõem às medidas governamentais porque as condições de vida se agravaram devido à pandemia e ao velho e ilegal bloqueio.

Um regime de tipo popular ou socialista deve reforçar o ideal de liberdade e democracia de modo mais fulgurante que a liberdade arrancada ao capitalismo pelos movimentos populares, sociais, democráticos, ecológicos, feministas e outros.

Ou a revolução francesa pelos direitos individuais e a russa pelos direitos sociais e económicos são incompatíveis, passados estes séculos de caminho da Humanidade? O que se viu foi a impossibilidade na URSS e nos outros países do Leste europeu de construir o socialismo sem garantir os direitos e as liberdades democráticas. Esse modelo sem o oxigénio que é a liberdade dos povos tarde ou cedo sucumbiria e sucumbiu.

Cuba deveria compreender que há uma rota que conduz ao desastre. O regime tem mais apoio que nos países do Leste, parece. Por isso, as possibilidades são mais amplas para respeitar direitos e liberdades mínimas. Pode imaginar-se um socialismo em que parte (grande ou pequena) da população não pode sair à rua e protestar ou apoiar? Muito provavelmente, o regime é capaz de mobilizar centenas de milhares de cubanos, mas há outros cubanos que se mobilizam para protestar contra o que acham que não está bem. Considerá-los inimigos é um desastre. São cubanos que não estão de acordo com o governo. Haverá, inclusive em termos académicos, algum regime que tenha o apoio de todas e todos os cidadãos?

Os cubanos são um povo de heróis desde Marti a Che a Cien Fuegos a Fidel e seguramente quererão ser tratados com a dignidade democrática que merecem. Já não lhes basta sofrer na carne o bloqueio do Império e serem agora castigados pelo bloqueio cívico por parte dos seus dirigentes. O argumento das patifarias do Império não pode justificar que o povo cubano não possa usufruir as liberdades democráticas que reivindica. As experiências socialistas do século XX mostram que a subestimação do valor da liberdade conduz ao fracasso.

Haja a coragem revolucionária e encete-se o diálogo. A não ser assim, no futuro a marca do socialismo também naquela parte do mundo ficará associada à asfixia democrática. Tenha-se presente que a extrema-direita também emerge com força na Hungria, na Polónia, na Chéquia, na Bulgária e no território da ex-RDA.

O ideal socialista precisa de ser resgatado e ter dentro dele o que o capitalismo não permite: liberdade, democracia e direitos sociais, económicos, ecológicos, culturais e de género. Não há futuro numa perna só. Os dois pilares são essenciais para o caminho do socialismo. A democracia não é inimiga dos direitos sociais, bem pelo contrário: quanto mais democracia, maior a possibilidade de alcançar os direitos sociais.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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