Da retórica à prática: está a União Europeia decidida a proteger os trabalhadores?

Na agenda europeia estão vários temas ligados ao trabalho, como os salários mínimos europeus ou o direito a desligar. Para uns são passos importantes, mas para outros não passam de boas intenções sem efeitos práticos.

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Andre Rodrigues

As intenções norteadoras da Comissão Europeia para o mundo laboral há muito que foram estabelecidas. Para o futuro do trabalho na União Europeia (UE), a Comissão quer assegurar a saúde e a segurança no meio laboral, promover a igualdade de oportunidades para homens e mulheres e garantir a protecção contra todo o tipo de discriminações.

A própria presidente da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, tem entoado aqueles princípios por diversas ocasiões. Ainda na recente cimeira social do Porto, von der Leyen, referiu-se às disparidades nas condições laborais de vários trabalhadores, trabalhadores esses que foram “essenciais” durante a pandemia – desde profissionais de saúde aos estafetas de entrega de comida. “Muitos destes trabalhadores essenciais não gozam dos mesmos direitos e da mesma segurança social que os outros. A economia social de mercado da Europa também deve trabalhar para eles”, afirmou a presidente da comissão. Para uns, são palavras carregadas de importância política. Para outros, é mera retórica.

“Há sinais muito positivos vindos da UE em matéria do trabalho”, defende ao PÚBLICO Manuel Pizarro, eurodeputado eleito pelo PS, que se enquadra no primeiro grupo. Para o socialista, não faltam exemplos da postura positiva da UE, como as directivas para a criação de salários mínimos europeus, para a promoção da transparência salarial ou para o “reforço” da protecção dos trabalhadores quanto ao risco de acidentes de trabalho. “Ou ainda a intervenção da UE no domínio dos direitos dos trabalhadores das plataformas e está anunciada para o segundo semestre deste ano uma proposta da comissão”, acrescenta. Tudo matérias que constam da agenda europeia.

Manuel Pizarro dá também o exemplo da iniciativa do “direito a desligar”, que visa marcar o fim do horário de trabalho, uma fronteira tão ténue no teletrabalho. O objectivo é “garantir que os modernos instrumentos de comunicação” não se transformem numa “espécie de prisão de quem trabalha”.

Por tudo isso, para o socialista é “profundamente injusta” a crítica de que a Comissão Europeia tem boas intenções, mas poucas medidas efectivas. E recorre, uma vez mais, aos exemplos: se a proposta do salário mínimo europeu já estivesse em vigor “não seria possível manter congelado o salário mínimo português como aconteceu entre 2011 e 2015”.

“A proposta não se traduz num mecanismo automático de elevação do salário mínimo, mas obriga os Estados-membros a adequar o salário mínimo a um conjunto de parâmetros e a justificarem perante a Comissão as razões pelas quais aumentam ou não o salário mínimo”, afirma Pizarro, salientado que a mesma directiva permite um “reforço da contratação colectiva”. “Há um recentrar de prioridades da UE no que diz respeito aos direitos sociais”, conclui.

José Manuel Fernandes, deputado no parlamento europeu eleito pelo PSD, também não embarca nas críticas à Comissão, porque, no caso do trabalho, a UE “está a fazer mais do que fazem alguns Estados-membros, como é o caso de Portugal”.

Para o social-democrata, a melhoria das condições laborais está associada ao progresso económico, porque “não há desenvolvimento social sem desenvolvimento económico”. Exemplo disso é o caso português, o sétimo país com o salário médio mais baixo da UE (933 euros), um país onde se trabalha mais, mas ganha-se e produz-se menos.

Somos dos que mais trabalham em termos de horas na UE e depois temos cerca de metade da produtividade da Alemanha”, afirma o parlamentar do PSD. Para inverter esses “problemas estruturais”, é preciso “criar emprego de qualidade”, apoiar as “pequenas e médias empresas” e apostar na educação. “Criar emprego não se faz com um mercado rígido em termos laborais”.

Contudo, há matérias em que é “fundamental” a UE legislar, considera José Manuel Fernandes, como o caso dos trabalhadores transfronteiriços, muitas vezes alvo de discriminação. Outro exemplo são as exigências de segurança no trabalho, porque ainda há “trabalhadores que vão morrendo noutros Estados-membros”.

“Devemos ter a harmonização de normas, não faz sentido termos regras de segurança num sítio e outras regras noutros”, afirma José Manuel Fernandes, que defende ainda uma intervenção legislativa para os trabalhadores de plataformas digitais. “Não faz sentido um trabalhador da Uber em Portugal não ter os mesmos direitos de um trabalhador da Uber em Espanha”, exemplifica.

Voltar a regular as “boas intenções”

No lado oposto, há quem considere que os “anúncios bem-intencionados” não são consequentes porque depois, na prática, a Comissão Europeia apresenta recomendações que “vão contra os direitos dos trabalhadores”, defende Sandra Pereira, eurodeputada do PCP.

A comunista diz ter feito as contas. Entre 2011 e 2019, a Comissão Europeia fez 38 recomendações aos Estados-membros. Recomendações que sugeriram, entre outros, a “diminuição do crescimento da massa salarial”, a “promoção do aumento do horário trabalho”, a “redução da segurança laboral” e o “aumento da idade da reforma”. “São recomendações que estão longe de dar resposta às ambições dos trabalhadores e que vão ao encontro dos interesses do grande capital”, atira.

Mas as críticas de Sandra Pereira estendem-se às próprias iniciativas sociais em discussão na UE, que acabam por “nivelar por baixo os direitos dos trabalhadores”. Exemplo: a tal directiva dos salários mínimos europeus, onde se advoga (entre outros critérios) que o salário mínimo seja estabelecido com base em 60% da mediana bruta do salário médio – o que já acontece em Portugal. “Se em Portugal o salário mínimo já é baixo e vem uma directiva de salários mínimos europeus que nos diz que nós até estamos acima de um indicador, isso é meio caminho andando para que os salários não sejam aumentados”, afirma.

A proposta sobre os salários mínimos europeus ainda está em discussão, mas para José Gusmão, a proposta da Comissão Europeia é um exemplo de “soft law” (lei suave, em tradução) porque “não impõe coisa nenhuma”. “Chamar directiva à directiva do salário mínimo é um exagero porque está mais próxima de uma resolução do que uma directiva”, afirma o deputado do Bloco de Esquerda no Parlamento Europeu, que pede, “pelo menos”, uma directiva que consagre a existência de salários mínimos na União - sejam eles “estipulados por lei” ou por “mecanismos de contratação colectiva”.

Para Gusmão, há um “problema” central naquilo que é “debate sobre os direitos do trabalho na UE”. Um “problema” que diz respeito à “contradição” entre a “retórica” e as medidas da Comissão Europeia. “A comissão não faz nenhum segredo da sua intenção de impedir a reversão de algumas das reformas que contribuíram para a desregulação do mercado”. E, além de não fazer segredo, a própria Comissão “opõem-se e ameaça” os países que pretendem, por exemplo, “repor os níveis de cobertura da contratação colectiva”, critica o bloquista.

José Gusmão enquadra a postura da Comissão Europeia naquilo que foi a política de “desregulação sistemática das relações do trabalho” nas últimas décadas. Uma “desregulação” apresentada como o “futuro do trabalho”, que criou “situações perversas”, como acontece na “esmagadora maioria” das pessoas em teletrabalho

Com a pandemia da covid-19 a colocar milhões de pessoas a trabalhar à distância, tornou-se “evidente” a necessidade de regular os horários laborais e garantir o tal direito a desligar. Na proposta sobre o direito a desligar, em que José Gusmão foi relator sombra, defende-se a utilização dos “dispositivos de comunicação entre trabalhador e empregador para proibir contactos fora do horário de trabalho”, explica.

Numa altura em que a transição digital é tida como o próximo passo das sociedades modernas, é preciso “antever e regular” os contextos laborais, defende José Gusmão: “todos os passos de desregulação foram justificados com a necessidade de criar emprego e isso pura e simplesmente não aconteceu. É preciso voltar a regular”.

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