Cascais e a destruição da memória colectiva das suas gentes

Ao sobrevalorizar o urbano, essencialmente como forma de financiamento camarário, com a ocupação progressiva da orla costeira, de áreas rústicas e de protecção e abatendo indiscriminadamente árvores, o perfil histórico comportamental desta câmara não se coaduna minimamente com a existência de quaisquer preocupações ecológicas ou de sustentabilidade.

Pode dizer-se que o ambiente é um tema que, a nível mundial, suscita preocupação crescente, dado que tem sido feita uma exploração excessiva dos recursos do Planeta sem que se tenha tido em conta a sustentabilidade dos ecossistemas capazes de satisfazer as necessidades da humanidade.

Em contraponto, é necessário defender uma sociedade que se fundamente num desenvolvimento produtivo alternativo, assente na sustentabilidade ecológica, na equidade social, na pluralidade política e na diversidade cultural.

Efectivamente, uma evolução global e harmoniosa do espaço territorial implica um planeamento cuidado, que fomente um desenvolvimento sustentado que incorpore todos os sectores económicos, com o estabelecimento de metas a atingir a médio e a curto prazo que não comprometam os objectivos definidos a longo prazo.

Apesar de ser actualmente muito citada, esta definição de desenvolvimento sustentado, que implica a satisfação de forma equitativa das necessidades das populações sem pôr em risco a satisfação das necessidades das gerações futuras, raramente é considerada no seu todo, pois fica frequentemente esquecida a noção essencial que contém, que é exactamente a noção de perpetuidade.

Por outro lado, as questões ambientais estão também indissoluvelmente ligadas e fazem parte integrante de um tema mais abrangente que é o ordenamento do território e que, no que concerne ao poder local, se torna de importância vital, mas que se confronta em Cascais com uma estratégia imobiliária avulsa de ocupação do solo com empreendimentos megalómanos, distribuídos aleatoriamente e ao sabor de interesses imobiliários de promotores e, o mais das vezes, localizados em zonas que deveriam constituir espaços de contenção e protecção.

Apenas como exemplo do que se passa com as áreas de Reserva Ecológica Nacional (REN) no Concelho de Cascais, ao longo dos últimos anos, no mapa seguinte pode facilmente observar-se que, uma vez excluída a maior parte da área de REN na zona Este do concelho, se assiste à invasão do Parque Natural de Sintra-Cascais (PNSC) com a expansão para Oeste das áreas de exclusão daquela reserva e subsequente classificação como solo urbano.

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Esta estratégia imobiliária impede o reordenamento adequado do território considerado como um todo, fomenta a sua desqualificação e conduz, nomeadamente, à devastação ambiental de zonas que deveriam ser consideradas de protecção e constituir espaços verdes tampão, proporcionando a qualidade de vida necessária às populações.

É essencial inverter esta tendência, por um lado promovendo a requalificação urbanística e, por outro, procedendo à sua contenção, com a ampliação de áreas de REN, o incremento de áreas agrícolas, florestais e de protecção, criando uma estrutura contínua devidamente dimensionada de corredores ecológicos, e ao mesmo tempo melhorar a qualidade do sistema de transportes, invertendo a tendência da utilização do transporte individual em detrimento do transporte público.

Com o devido planeamento, torna-se urgente recuperar as áreas ardidas no PNSC bem como as áreas degradadas, e reflorestar novas áreas por forma a reconstituir a estrutura Ecológica Municipal que foi completamente vandalizada nas últimas décadas, impedindo simultaneamente a invasão do PNSC por planos de urbanização.

Também há que contrariar o traçado de vias sobredimensionadas que, não se adaptando à malha urbana existente, estraçalham o património das povoações que atravessam, constituindo barreiras de difícil e perigosa transposição para as populações, sem que haja, em coordenação com os concelhos limítrofes, um estudo integrado e abrangente do conceito do colector distribuidor, evitando impactos brutais sobre o meio ambiente, particularmente quando são ocupados os leitos de cheia das ribeiras.

Por outro lado, é também completamente inaceitável que haja legislação que permita inverter o conceito de sistematização hierárquica harmoniosa e global do ordenamento do território, possibilitando, por exemplo, que Urbanizações e Planos de Pormenor, isolados e hierarquicamente inferiores, com avaliações ambientais desintegradas e não cumulativas, determinem o conteúdo de planos de nível superior, sejam eles Municipais, Metropolitanos ou Nacionais.

A partir de 2019, o novo enquadramento legal exige, nomeadamente, que: i) a Administração Pública possa intervir no mercado de solos por forma a controlar a expansão urbana e a especulação imobiliária; ii) haja compatibilização entre os Instrumentos de Gestão Territorial (IGT) e uma correcta classificação do solo, limitando a sua reclassificação como urbano; iii) o Plano Director Municipal (PDM), os Planos de Pormenor (PP) e os Planos de Urbanização (PU), sendo os instrumentos que determinam a classificação do uso do solo, tenham obrigatoriamente que obedecer às orientações contidas nos programas de âmbito nacional, sectorial regional e sub-regional.

Continuam, no entanto, a subsistir e a ser invocados abusivamente os denominados “direitos adquiridos”, cuja legitimidade tem que ser posta em causa, pois mais não são do que uma forma habilidosa de contornar as leis e as correcções que têm forçosamente que ser aplicadas, por via de compromissos nacionais e internacionais assumidos.

É igualmente importante impedir a descaracterização das povoações e proceder a um ordenamento do território que colmate assimetrias, defenda o interesse público, valorize os aspectos da saúde, do turismo, da cultura, do património histórico e arquitectónico, do desporto e do lazer, e que intervenha de forma prudente e cuidada, visando a preservação do património natural existente e a defesa da qualidade de vida dos residentes e dos visitantes.

Ao sobrevalorizar o urbano, essencialmente como forma de financiamento camarário, com a ocupação progressiva da orla costeira, de áreas rústicas e de protecção e abatendo indiscriminadamente árvores, o perfil histórico comportamental desta câmara não se coaduna minimamente com a existência de quaisquer preocupações ecológicas ou de sustentabilidade.

Por outro lado, e ao contrário do que Carlos Carreiras advoga, o que acontece no Concelho de Cascais não pode ser analisado isoladamente pois está intrinsecamente ligado ao que se passa em toda a Área Metropolitana de Lisboa com: (i) o passivo ambiental e saneamento básico deficiente; (ii) a localização de actividades e de infra-estruturas em áreas não vocacionadas para essas funções; (iii) a degradação urbanística de áreas significativas; (iv) a desafectação de grande parte das áreas de REN e RAN, (v) a urbanização desenfreada em zonas rurais, em zonas verdes de protecção e em faixas de protecção costeira, bem como (vi) o traçado de vias sobredimensionadas.

Acresce ainda a importância de se observar o rigoroso cumprimento das faixas de protecção do Programa da Orla Costeira Alcobaça-Cabo Espichel (POC-ACE) que reflecte, designadamente, a Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável 2015 e a Estratégia Nacional de Gestão Integrada da Zona Costeira, que consagram princípios, visões e objectivos e que são sistematicamente desrespeitados em planos municipais de ordenamento do território que não limitam a crescente pressão urbano-turística, nem contemplam a preparação do concelho para o eminente estado de emergência climática.

Carlos Carreiras em Cascais, ao invés do que propagandeia – ser o maior defensor do ambiente e da sustentabilidade – e utilizando uma linguagem pretensamente conhecedora que se suspeita ser apenas consubstanciada num saber mal-amanhado de Facebook, ficará outrossim sobejamente conhecido pela devastação que tem provocado no concelho por via da implementação de uma política de verdadeiro “desordenamento do território”.

Há que suster rapidamente esta desclassificação ambiental e cultural em curso e perspectivar um futuro na base da melhoria da qualidade de vida das populações, da valorização da herança histórica, dos recursos e potencialidades do concelho e da criação de projectos que promovam a igualdade de oportunidades e o emprego qualificado.

No Concelho de Cascais, sem se pretender ser exaustivo, apenas se referem, como particularmente preocupantes no meio deste descalabro de opções erradas e de falta de um adequado planeamento global, os seguintes casos:

  • Biscaia, uma localidade integrada no PNSC com um núcleo urbano de valor patrimonial e onde, após o local ter sido em devido tempo muito convenientemente excluído da REN, a câmara aprovou um alvará numa zona especialmente sensível, em terreno escarpado e de susceptibilidade moderada para sismos e movimentos de massa em vertentes, susceptível a ravinamento perante a eminente impermeabilização a que eventualmente será sujeito com a intensificação das urbanizações na cumeada. Pelos riscos decorrentes da sua localização e pela movimentação de terras a que será sujeito, se se materializar a urbanização prevista, manda a prudência que não só a urbanização em causa não seja concretizada, mas que além disso se proceda à verificação da estabilidade das urbanizações envolventes.
  • Aldeia de Juso, cuja população, na perspectiva da edificação nos terrenos da Alcatel de uma área brutal de espaços comerciais, escritórios e habitação com os inerentes impactes negativos do aumento de tráfego, do ruído, da poluição atmosférica e de outros de índole patrimonial, teme muito justamente pela deterioração da sua qualidade de vida. Também as localidades vizinhas de Birre, Areia, Murches, Charneca, Zambujeiro, Janes e Malveira receiam ver a sua mobilidade e qualidade de vida profundamente afectadas.
  • Aeródromo de Tires, cujas populações continuam a sofrer com a intensificação do tráfego aéreo que, para além de ser uma fonte inaceitável de poluição atmosférica e sonora, constitui um risco acrescido de ocorrência de acidentes que podem ter dimensões graves dada a proximidade de zonas habitadas;
  • Quinta do Barão, cuja urbanização destruirá uma referência histórica e cultural; e
  • Orla costeira de Cascais a Carcavelos, designadamente a Quinta dos Ingleses, um espaço único que constitui uma reserva de biodiversidade e o suporte ambiental e de lazer da população do concelho, onde está prevista a implantação de uma urbanização megalómana com uma volumetria dissonante de toda a envolvente, que arrasará património histórico, arquitectónico, cultural e ambiental.

E, parafraseando Miguel Sousa Tavares [1], passados que são mais de sete anos, apetece voltar a perguntar: "Como é possível odiar-se tanto uma terra tão bonita?”

[1] Jornal Expresso, 10-05-2014

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