Futebol e política: mundos verdadeiramente intocáveis?

As decisões políticas, seja no desporto ou noutra área qualquer, estão – ou seria bom que estivessem – igualmente impedidas de se escudar numa aparente neutralidade quando tanto defendem mensagens como realizam acções que não se constituem como ausentes de um olhar social, cultural e político sobre o mundo.

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Reuters/Andreas Gebert

Nunca fui uma pessoa que se entusiasmasse muito com o futebol. Reconheço as suas potencialidades e estou ciente dos riscos e violências em que se envolve. É verdade, ainda, que sou apreciador de campeonatos futebolísticos onde estão representadas diversas nações, como o Mundial ou o Europeu, este último cuja edição mais recente está a ser por mim acompanhada com algum fulgor. De resto, a minha relação com esta actividade profissional ou de lazer humana tem sido precária.

Todavia, não é o futebol dentro dos estádios que pretendo propriamente abordar neste texto, mas antes aquele que acontece fora destes e se interliga com outras dimensões da vida das pessoas. E, neste âmbito, houve uma notícia, que saiu na última terça-feira, 22 de Junho, e me deixou desanimado com o desporto, com a União das Associações Europeias de Futebol (mais conhecida como UEFA) enquanto instituição e com a política como área a partir da qual decisões que organizam e afectam as sociedades são tomadas: a rejeição, por parte da UEFA, da possibilidade de a cidade de Munique, na Alemanha, iluminar o estádio Allianz Arena com as cores da bandeira e da causa LGBTQ+.

Vamos por partes. Na transacta semana foi anunciado que a Hungria aprovou uma lei proibitiva da divulgação de conteúdos LGBTQ+ junto de pessoas com menos de 18 anos, medida esta que se inclui num pacote de outras resoluções de alegada protecção contra a pedofilia. Em reacção, a Câmara Municipal de Munique pediu à UEFA que o Allianz Arena, local do jogo entre a Alemanha e a Hungria, pudesse ser iluminado com as cores do arco-íris, o símbolo maior do orgulho gay, lésbico, bissexual, trans e outras identidades que compõem esta comunidade. No entanto, a decisão desta organização que rege o futebol europeu foi a da não permissão desta proposta, justificando-a com um comunicado onde consta a seguinte frase: “Pelos seus estatutos, a UEFA é uma organização política e religiosamente neutra.”

Ora, é curiosa esta explicação para a atitude tomada, especialmente quando no mesmo comunicado a UEFA, tal como é referido na Tribuna do Expresso, afirma que “racismo, homofobia, sexismo e todas as formas de discriminação são uma nódoa na nossa sociedade”. Na minha opinião, não é, de todo, possível uma pessoa ou uma entidade oficial condenar o ódio e a discriminação e argumentar que é política e religiosamente neutra. Para defender esta ideia, invoco um livro, publicado em 2010, da investigadora e professora Isabel Menezes, intitulado Intervenção comunitária: Uma perspectiva psicológica. Nele, a autora defende um conjunto de ofícios com que todas/os as/os profissionais que planeiam e efectuam intervenção junto de grupos e comunidades acabam por se confrontar e, entre eles, sobressai um: “o ofício de ‘fazer política por outros meios'”, por oposição ao “ofício de ‘não tomar partido'”. Com esta ideia, Menezes dá-nos a entender algo muito simples: os diferentes saberes que subjazem ao serviço comunitário estão inevitavelmente associados aos princípios da democracia, do empoderamento das pessoas, do seu desenvolvimento e autonomia, da justiça e do bem-estar.

As decisões políticas, seja no desporto ou noutra área qualquer, estão – ou seria bom que estivessem – igualmente impedidas de se escudar numa aparente neutralidade quando tanto defendem mensagens como realizam acções que não se constituem como ausentes de um olhar social, cultural e político sobre o mundo. Neste caso em concreto, a decisão mais correcta pautar-se-ia pelo deferimento do pedido da Câmara de Munique, pois trata-se de uma proposta alinhada com a defesa dos direitos humanos, os quais i) não devem estar esvaziados de significado, mas antes ser vistos em comportamentos quotidianos de inclusão da diversidade; ii) devem ser o pilar de uma Europa e de uma União Europeia, contextos onde se encontra a Hungria, que não se percepcionem como meros territórios onde a cidadania redunda exclusivamente na faceta económica da circulação de bens, serviços e pessoas.

Esta decisão da UEFA não é igualmente um incentivo ao trabalho colaborativo entre países, como também escreveu no seu comunicado. A colaboração só existe com a assunção recíproca de responsabilidades e com a identificação e a gestão democráticas, e não o branqueamento, dos conflitos. A meu ver, a UEFA decidiu, portanto, fechar os olhos à realidade além-futebol, ignorando ou, até mesmo, negligenciado o poder das esferas do social em se articularem e produzirem efeitos poderosos. Não deixa de ser, porém, estranho que uma entidade oficial e, dessarte, com autoridade, tenha medo de a usar em prol de um avanço humanitário. Estou em crer que a UEFA poderá estar um pouco confusa no que pretende promover e defender, mas estamos aqui, adeptas/os, jogadoras/es, equipas técnicas e todas e todos as/os cidadãs/ãos, para relembrar qual o caminho, neste mês e durante o ano inteiro, de que nos devemos orgulhar.

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