Lutar por uma cidade inclusiva é lutar pela esperança

Será insustentável do ponto de vista social, ambiental e político continuarmos a trabalhar de forma sectorial e querermos avançar com uma agenda progressista se negligenciarmos a gravidade das vulnerabilidades existentes. Não podemos continuar a gerir a coisa pública sobre modelos do passado.

Nestas eleições autárquicas importa debater um novo modelo urbano para a cidade de Lisboa – mais justo, ecológico e democrático. Para isso, é necessário atender aos problemas que as pessoas sentem agora e simultaneamente construir as fundações de um futuro sólido e ambicioso, que supere a visão de cidade unicamente orientada para o nexo entre turismo, imobiliário e finança, de consequente atropelo dos direitos à habitação e à cidade.

Petra Kelly, figura singular da esquerda verde europeia, entendia a ecologia como uma reconciliação da sociedade com a natureza e com o planeta, inseparável de uma reconciliação social baseada na igualdade e no cumprimento dos direitos sociais das mulheres, populações migrantes e minorias étnicas, das pessoas com deficiência, das crianças, dos mais velhos e dos mais vulneráveis economicamente. A sua visão continua a explicar os contornos da crise em que vivemos não como uma série de problemas isolados, mas como sintomas de um modelo de desenvolvimento que destrói os recursos naturais, coloca o crescimento económico à frente da coesão e do bem-estar social, polariza rendimentos e qualidade de vida e compromete direitos fundamentais.

Ao nível local, esta visão exige uma nova forma de pensar a relação da cidade com a natureza e uma concretização mais rápida, descentralizada e justa da descarbonização e do combate às alterações climáticas. Nesse sentido, é essencial programar a transição energética respeitando os lugares onde as pessoas vivem e resolvendo as contradições que discutimos nas últimas décadas. Nomeadamente, termos uma mobilidade centrada em redes de transportes suaves, públicas e partilhadas ser incompatível com políticas de habitação e urbanismo que fomentam o uso do carro e modos de vida marcados pela distância, porque impedem a habitação permanente nos bairros mais centrais, com mais condições para uma vida de proximidade e melhor servidos dessas redes de transportes.

O urbanismo de Lisboa deve, pelo contrário, ser verdadeiramente inclusivo: garantindo o acesso universal à habitação; fomentando rotinas de proximidade; diversificando a economia e apoiando a criação de comércio, serviços e cooperativas locais; centrando a mobilidade nas redes de transportes suaves, públicas e partilhadas; ligando bairros segregados à malha urbana e às redes de serviços públicos necessárias a uma vida saudável; alargando os corredores verdes e espaços de conservação da biodiversidade; e qualificando o espaço público e a inclusão de todas as pessoas no seu uso diário e fruição.

Para trabalhar nesses objetivos é necessário cuidar da participação pública e da transparência e credibilidade dos processos de decisão política. As populações têm o direito a pronunciar-se sobre as transformações do seu bairro e da sua cidade e a influenciar efetivamente o curso da decisão política, aspeto visivelmente comprometido nas últimas governações camarárias.

A ideia de que ninguém pode ficar para trás, neste momento que se pretende de transição, exige uma política ecologista e de combate às alterações climáticas que dependa do respeito e inclusão das populações na formulação dos compromissos a que vamos chegando. Será insustentável do ponto de vista social, ambiental e político continuarmos a trabalhar de forma sectorial e querermos avançar com uma agenda progressista se negligenciarmos a gravidade das vulnerabilidades existentes. Não podemos continuar a gerir a coisa pública sobre modelos do passado. O debate de ideias e a sua melhoria contínua para construir um futuro melhor depende do cruzamento entre as políticas sociais, as políticas urbanas e do território e as políticas da conservação da natureza e do desenvolvimento sustentável.

Partilhamos uma preocupação intergeracional de que não controlamos como a nossa sociedade cresce e se transforma. Reconhecemos a violência e o efeito desagregador da progressão e abrangência das desigualdades sociais e não temos feito o suficiente para as contrariar. Mas este combate tem de ser uma prioridade, sob pena de continuarmos numa espiral de polarização do debate público onde se introduz a ideia errada e perigosa de que a democracia não é um sistema político que garante a igualdade, a liberdade e a fraternidade.

Por todas estas razões, precisamos de lutar pela esperança e ter a convicção de que esta também está nas nossas mãos e numa abordagem de convergência, formulando novos compromissos públicos que reordenem as prioridades do poder local. A nossa democracia precisa, sobretudo na gestão dos municípios e freguesias, de um projeto político alternativo que está disposto a ouvir as populações a fim de resolver os seus problemas imediatos, e que simultaneamente compreende que só juntos podemos construir as fundações para um futuro mais seguro, feliz e democrático para nós e para as próximas gerações. Um futuro no qual esperamos que a invocação de Petra Kelly não seja de atualidade, mas de agradecimento pelo seu papel na superação da crise sanitária, climática, ecológica, social e económica em que vivemos.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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