A má reputação que cabe aos outros

No fundo, grande parte das histórias que contamos sobre os outros carecem de uma e uma só característica: justiça.

Somos todos culpados de uma delinquência que não podemos continuar a escamotear. São infracções atrás de infracções cometidas diariamente, e disto ninguém fala. Falemos, então, para ver se corrigimos a maleita deste nosso tempo. Corre por aí uma citação (falsamente atribuída a Mark Twain) que nos aconselha a não deixar que os factos arruínem uma boa história, e algo me diz que temos andado a seguir o conselho à letra.

Nas nossas histórias, damos constantemente má reputação aos outros. Reina em nós uma certa mania de retratar os outros com um tom jocoso, seja no conteúdo ou na forma. É fácil exemplificar, e também é fácil ser o primeiro a admitir que eu próprio incorro neste delito social: sempre que falo de uma circunstância em que algum espertalhão decidiu passar-me a perna, prontifico-me a personificá-lo. De que modo? Depende da hora do dia e do estado de espírito. Mas dar-lhe-ei sempre uma voz aguda, irritante ou débil. Na hora do diálogo em que sou eu a falar, a voz transforma-se, e é agora segura, tranquila, dona de si própria e da razão que anuncia. Quem disser que nunca fez isto, está a mentir.

Mas há mais: nessa altercação que narramos a amigos, é rara a ocasião em que o outro vence a disputa. Nada disso. Somos nós o dono da razão. Discorremos sobre a discussão, com apartes necessários que ajudem o interlocutor a compreender o motivo da nossa indignação. Ao invés, o outro nunca possui advogado de defesa. Para dar a ilusão de que o estamos a elevar, fazemo-lo contra-argumentar, mas os seus argumentos são sempre simplistas, demonstrando uma eloquência débil nas pessoas de quem falamos. Argumentos à imagem de quem os usa: fraquinhos, fraquinhos. E – voilà! – ao final da discussão, o detentor da razão somos nós, os narradores. Pudessem ser elaboradas estatísticas sobre esta tramóia que acontece diariamente debaixo dos nossos narizes, e depressa constataríamos que estamos todos a mentir uns aos outros sobre o quão má é a reputação dos nossos putativos inimigos.

Mas minto: nem sempre damos má reputação aos outros. De outras vezes, endeusamo-los. Porque – claro! – nós, seres tão especiais, temos a honra de conhecer as melhores pessoas do mundo, ou somos exclusivos ao ponto de ninguém na nossa grupeta habitual saber da existência daqueloutro realizador que nos falou ao coração com aquele plano monumental do sol a raiar sobre um ramo de oliveira, naquela cena daquele filme que vimos naquela sala com aquela pessoa, também ela extraordinária. É uma regra dourada: os outros extraordinários só nós sabemos quem são.

No fundo, grande parte das histórias que contamos sobre os outros carecem de uma e uma só característica: justiça. Os outros, esses, ora são heróis sobre os quais nunca ninguém cantou suficientes glórias, ora são seres a quem deus nosso senhor não assegurou mais do que uma beterraba mirrada e bolorenta no lugar do cérebro.

O que dizemos dos outros, bem vistas as coisas, diz muito sobre nós próprios. Ou sobre a imagem que queremos passar de nós próprios. Ou talvez este cronista esteja apenas de veneno em riste na ponta dos dedos, e o modo como falamos dos outros seja apenas o fruto da paixão com que sentimos o que nos acontece. E, nisso, existe sempre zero maldade. Apenas peculiaridade da qual devemos rir – e não apenas nos outros, mas em nós. Porque a paixão, ganhe ela a forma de um coração ou de um corisco, é um constante motivo de celebração. Prossigamos com as histórias, pois então, mesmo que as apimentemos com exageros que pouco condigam com a verdade.

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