Uma esmolinha para o Santo António

Não se percebe a tontice que é ver políticos com responsabilidades acrescidas, e outros a quererem ainda crescer, virem defender que Lisboa devia estar em festa. Empresários, comerciantes, organizações de marchas, marchantes e tantos outros, que são os principais prejudicados desta decisão, conformam-se com tristeza, mas percebem que existe um bem maior que deve ser defendido. A vida e a saúde pública.

São muitos os que, por esse mundo afora, vão tomando consciência de que a Humanidade caminha a passos largos para um precipício que a intolerância e a segregação vão cavando cada vez mais fundo.

O mundo viu-se, inesperadamente, parado por uma pandemia que nos colocou a todos em confinamento e nos parou como nunca havíamos tido conhecimento na nossa história recente. E parou o turbilhão das nossas vidas mundanas, e a concentração de tráfego de um quotidiano feito de muitos nadas, e pararam batalhas mais ou menos visíveis, e pararam as hordas e hordas de turistas por essa Europa fora, e pararam as multidões que enchiam os centros comerciais, as esplanadas e as zonas de veraneio. Parou muita coisa, o mundo viu-se, inesperadamente, parado e a regenerar-se de tanta poluição que se acumulava no ar e no mar. “Uma oportunidade para refletirmos”, disseram uns, “uma mudança de rumo definitiva, em que o mundo não mais será como dantes”, disseram outros, mas não é o que temos visto.

Se muitos tomaram consciência de que havia de facto algo a mudar nas nossas vidas, outros ansiavam por voltar à vida que tinham o quanto antes. Obviamente de permeio houve tantos que enfrentaram duras provações por se verem impedidos de trabalhar e de prover a sua subsistência pelo trabalho, pararam a sua atividade sem prazo definido, penhoraram a sua vida e a dos seus. E nisto o melhor de nós veio à tona, foram muitos os exemplos de solidariedade que nos mostraram que podemos ter um futuro onde privilegiamos o que mais importa, em equilíbrio com os nossos deveres para com a sociedade. Mas também o pior.

E o mundo, pelo menos uma parte dele, mudou. E, enquanto isso, não pararam as hordas e hordas de migrantes que arriscam a vida em travessias horrendas, entre os perigos do mar revolto e a infâmia do tráfico de pessoas. Enquanto o mudo parou, não pararam as guerras insanas com base em radicalismos incompreensíveis aos olhos do século XXI. Não parou a intolerância religiosa nem o racismo. Não parou a xenofobia, não pararam os abusos sobre os mais frágeis. Não parou a corrupção nem a ambição desmedida que destrói a democracia. Não pararam os radicalismos ideológicos, antes aumentou a escalada à esquerda e à direita de movimentos políticos cuja única bandeira é a da intolerância e o pensamento único. 

Em todos os cantos do mundo se percebe e se sabe o caos em que todos mergulhamos e que só com força, resiliência, consciência e alguma intransigência face aos pensamentos mais ligeiros e fantasiosos poderemos, em conjunto, caminhar na direção da normalidade tão desejada.

Então, e Lisboa? Não se passou nada em Lisboa?

Em mês de Santos Populares fica tudo em casa? Não está correto por parte da Câmara Municipal de Lisboa e por parte da maioria das juntas de freguesia da cidade. Não está certo. Tirania!

Vamos então perder os nossos arraiais, as marchas populares, o arquinho e o balão, a sardinha assada, a oportunidade de ver milhares e milhares de pessoas a subir e descer o Castelo? Já não vamos poder fazer as habituais “diretas noite dentro”, de copo de cerveja na mão, aos abraços e aos beijos pelo Bairro Alto “a fora”? Malvado governo da cidade! Crueldade!

Como vão os Lisboetas e todos os que nos visitam nesta altura do ano sobreviver face a esta posição da edilidade? As suas vidas jamais serão as mesmas, desgraça, horror, opressão. Ruindade!

Logo agora que todos queríamos aumentar em barda o número de novos casos covid-19 na cidade e no país, logo agora que era oportunidade perfeita para voltar a fechar a cidade, entupir os hospitais, fechar as escolas, as empresas, o comércio, as igrejas e tudo e tudo e tudo…

Logo agora, neste exato momento aparece a Edil Responsabilidade e decide: não, não vamos correr riscos! Devemos ser responsáveis de forma coletiva e individual, temos de cumprir as normas. Precisamos de acelerar o processo de vacinação. Temos de defender a cidade e os Lisboetas. Não vamos retroceder, a bem da saúde pública e da economia da cidade.

Também não me parece correto da parte dele estragar os planos de algumas mentes veraneantes que por aí germinam, carregadas de boas intenções viradas à “silly season alfacinha” e que, por motivos eleitoralistas, acabam por dizer uma coisa e o seu contrário do dia para a noite. Fecha tudo, abre tudo, fecha tudo, abre tudo, fecha tudo, abre tudo até não haver amanhã.

Agora que sequei a veia da ironia, vamos perceber que tontice é esta de políticos com responsabilidades acrescidas, e outros a quererem ainda crescer, virem defender que Lisboa devia estar em festa. Empresários, comerciantes, organizações de marchas, marchantes e tantos outros, que são os principais prejudicados desta decisão, conformam-se com tristeza, mas percebem que existe um bem maior que deve ser defendido. A vida e a saúde pública.

Todos percebem que este ano e meio de grandes e dolorosos sacrifícios e dolorosas dificuldades foi combatido estoicamente por todos, sem exceção, toda a cidade, em especial a Câmara Municipal de Lisboa, que se envolveu e desenvolveu políticas e medidas públicas, financeiras e sociais, de combate à pandemia e auxílio às empresas, às associações, ao comércio e às famílias. Num momento em que o processo de vacinação se encontra em curso e em bom rumo, abrir as portas aos Santos Populares seria criminoso e uma falta de respeito pelos sacrifícios que todos temos feito ao longo de tantos e tantos meses.

Chegados os Santos, momento ideal para alguns acordarem do seu sono REM e imaginarem que é a altura adequada para uma voltinha catita pelos arraiais de Lisboa. Até percebo esse desejo, confesso que sim. Todos gostaríamos.

Mas quem conhece Lisboa, a Lisboa alfacinha e popular por altura dos Santos, é obrigado a discernir que esta teoria não é mais que um convite a que Lisboa morresse na praia e se visse condenada à quase certa sentença de sermos obrigados a fechá-la de novo por tempo indeterminado. É disto que se trata.

Lisboa é para manter segura. Em respeito àqueles que ainda não descansaram neste combate, em respeito àqueles que partiram, em respeito àqueles tantos que ainda passam tormentas por via dos efeitos da covid.

Governar é zelar responsavelmente pelos cidadãos e pelos territórios.

Governar é saber dizer não quando é preciso, é defendê-los.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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