Princípio, meio e fim: a ressaca

Princípio, meio e fim, que esteve na antena da SIC ao longo das últimas seis semanas, é o desvario mais bem-sucedido da televisão portuguesa do último punhado de anos.

É sempre assim: quando uma coisa começa a saber bem, termina. É assim com os gelados, é assim com as conversas valiosas, é assim com as séries que valem cada segundo. É uma das provas inequívocas de que deus não existe, ou de que, pelo menos, se está bem nas tintas para todos nós. Se existisse e tivesse gozo em roubar-nos assim o prazer logo na melhor parte, seria um vilão malvado. Perdão, divaguei. Dizia eu que as melhores coisas terminam cedo demais. E, ao terminar, deixam para trás um vazio com a sua forma exacta, como aqueles buracos por onde desaparecem as personagens de desenhos animados quando se despenham no chão ou numa parede.

O vazio de prazer que sinto no momento em que escrevo estas letras tem a forma de uma série televisiva. Falo de Princípio, Meio e Fim, que esteve na antena da SIC ao longo das últimas seis semanas, e que é o desvario mais bem-sucedido da televisão portuguesa do último punhado de anos. Uma série que – lá está – durou tempo de menos, mas que instaurou hábitos que hoje já não fazem sentido. Posso contar os meus: privado do luxo de ficar acordado na madrugada de domingo para segunda, o que acontecia era um ritual de chegada a casa pós-trabalho-de-primeiro-dia-de-semana e uma aterragem directa no sofá, seguida de uma puxadela atrás na box, e cinquenta minutos de doideira da boa.

Aos desafortunados que não sabem do que falo, é preciso contextualizar: durante metade do programa, observávamos os quatro argumentistas (Salvador Martinha, Bruno Nogueira, Filipe Melo e Nuno Markl) a escrever um guião para uma cena em particular, que tinha a única obrigatoriedade de começar sempre da mesma forma: os mesmos cinco amigos prestes a começar a jantar. Os guionistas tinham diante de si algumas circunscrições na altura da concepção da ideia: o texto tinha de ficar pronto em duas horas (que vemos condensadas em vinte e poucos minutos), e seguia para os actores mesmo que levasse erros de grafia ou incompletude narrativa. A segunda parte do programa consistia na execução da cena, por mais insana que fosse, pelos cinco actores (Nuno Lopes, Jéssica Athayde, Albano Jerónimo, Bruno Nogueira e Rita Cabaço).

O resultado desta ideia, para o espectador? Subdivide-se em dois: na primeira parte, damos por nós cheios de vontade de estar naquele brainstorming com os argumentistas, dando ideias destravadas e mostrando que também somos capazes de ser gandas malucos – embora todos saibamos que aquilo que vemos a acontecer é filigrana exclusiva apenas a alguns, resultado de anos e anos e anos de falhanços e outras ideias que esbarraram em inércia e inconsequência e descrença, em cima de dez mil horas (mais até, certamente) de experiências. E, mais tarde, as personagens deixam de ser personagens e já são parte da mobília – e da família – das nossas salas de estar, e ansiamos pela onda new age insuportável do Stone, ou torcemo-nos de constrangimento pelos comentários meio tansos, meio enternecedores do Luís Henrique, ou temos esperança de que a Maria João entorne uma garrafa para a conversa ficar mais entusiasmante.

Mas agora, agora que não há mais Princípio, Meio e Fim, uma pessoa vê-se desorientada nos hábitos que andava a manter, e não temos outra razão formidável para nos atirarmos ao sofá nas madrugadas de segunda-feira ou nos dias seguintes, a não ser por causa de uma série brilhantíssima qualquer da HBO ou de um lugar-comum no qual a Netflix torrou três ou quatro milhõezitos.

Se calhar, é mesmo por terminarem tão cedo que as coisas boas são boas. As coisas que se prolongam demasiado acabam por nos fazer esquecer de que, no início, eram boas. Ao invés, as que morrem na hora certa deixam saudades. Saudades que merecem esta declaração de amor a tudo aquilo que sai dos dedos e da moleirinha do Salvador, do Markl, do Melo e, principalmente, do Nogueira. E saudades que merecerão um abraço apertado assim que se ameaçar um regresso (wink segunda temporada).

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