“Se o senhor CEO da Pfizer o diz…” – crítica aos argumentos do Governo português em defesa das patentes

O maior mistério de todo este processo é a ausência de um generalizado sentimento de indignação quanto a esta posição do governo português. Como pode um governo que se reclama do lado esquerdo do espectro político colocar-se ao lado dos lucros excessivos das farmacêuticas e contra a recomendação do governo dos EUA, do Papa e da própria OMS?

O governo português apresentou três argumentos para defender a sua posição desfavorável ao levantamento das patentes das vacinas contra a covid-19. Infelizmente, nenhum deles resiste a um breve exame crítico.

O primeiro argumento surgiu em pleno Conselho Europeu. Depois de Joe Biden e o Papa Francisco se mostrarem favoráveis ao levantamento de patentes, o que permitiria a descentralização da produção e salvar potencialmente milhões de vidas, o Conselho Europeu reunido no Porto estava sob pressão para emitir um parecer semelhante.

Mas não o fez. Todos os intervenientes, desde Emmanuel Macron a António Costa, repetiram em coro o primeiro argumento: o problema não são as patentes, mas a capacidade instalada de produção. Segundo essa teoria, mesmo que a propriedade intelectual fosse levantada, a maioria dos países do mundo não seria capaz de as produzir. A verdadeira questão seria como aumentar a capacidade produtiva europeia para exportação.

O segundo argumento chegaria escassos dias depois pela voz de António Costa, na conferência de imprensa concedida ao lado do Presidente argentino. Quebrar as patentes seria, segundo o primeiro-ministro, pôr em causa o princípio da proteção da propriedade intelectual, colocando em causa a inovação futura no setor farmacêutico e noutros setores.

Finalmente, o terceiro e mais cómico-trágico argumento surgiria pouco depois. O primeiro-ministro publicava um tweet onde garantia ter falado com o CEO da Pfizer, que lhe haveria assegurado que a produção das vacinas ia acelerar e seriam negociados preços acessíveis para os países em desenvolvimento.

Comecemos por rever o segundo argumento da cronologia, por ser aquele que, num primeiro olhar, aparenta ter maior sustentação teórica. Será que, neste caso, quebrar patentes colocaria em causa a inovação futura? Em primeiro lugar, importa sublinhar que dentro do debate económico sobre patentes não existe nenhum consenso firmado. Por um lado, a propriedade intelectual limita a difusão de conhecimento e do progresso tecnológico existente, contribuindo para conter a inovação futura. Por outro lado, a propriedade intelectual pode ser uma condição necessária para que a inovação se verifique. Em grande medida, as empresas alocam fundos próprios para investigação e desenvolvimento porque têm a expetativa de gerar receitas futuras provindas do monopólio temporário criado pela propriedade intelectual sobre o produto desenvolvido. Sem essa propriedade intelectual, o incentivo para alocar fundos a investigação e desenvolvimento seria menor e o produto inovador poderia nunca existir.

É este último argumento que está implícito na posição de António Costa. O problema é que ele não tem qualquer aplicação no caso das vacinas para a covid-19, porque o financiamento para a investigação das vacinas não foi realizado, em larga medida, com fundos próprios das empresas. A esmagadora maioria do financiamento foi público. Segundo um estudo publicado recentemente por investigadores do UCL, Oxford e Cambridge, estima-se que entre 97 e 99% do financiamento da AstraZeneca tenha sido público. Na mesma linha, num fact checking publicado no USA Today, concluiu-se que a farmacêutica Moderna terá recebido cerca de 2,5 biliões de dólares de fundos públicos. E, mesmo que não tivessem recebido qualquer financiamento para investigação, o mercado garantido e os fundos adiantados para as encomendas seriam incentivo bastante para estimular a descoberta da vacina. Segundo o noticiado pelo New York Times, por exemplo, o governo norte-americano assinou um contrato de dois biliões de dólares em meados de 2020 com a Pfizer para garantir a produção das doses a serem administradas nos Estados Unidos.

Com efeito, o argumento trazido por António Costa não tem qualquer aplicação neste contexto. Os fundos para desenvolvimento foram maioritariamente públicos e, por conseguinte, o lucro monopolista que advém das patentes não é necessário para incentivar qualquer investimento em I&D num momento anterior. Por outro lado, o mercado garantido à escala global, com contratos de centenas de milhões de doses pagas antes de serem sequer produzidas, seria um estímulo suficiente para a criação da vacina.

Os lucros das farmacêuticas falam por si. A BioNTech, empresa alemã parceira da Pfizer, obteve lucros de 1,3 biliões de dólares no primeiro trimestre deste ano, o que compara com apenas 53 milhões no ano anterior. A economia política deste processo e os interesses da Alemanha não poderiam ficar mais explícitos.

Chegamos agora ao segundo argumento, veiculado no Conselho Europeu, segundo o qual o levantamento das patentes não permitiria aumentar a produção de vacinas, porque a maioria dos países não tem capacidade utilizada para as produzir. Se assim fosse, como se pode explicar que vários países em desenvolvimento, entre os quais a Índia, estejam desde outubro a solicitar a quebra de patentes na Organização Mundial do Comércio, argumentando que esse seria um passo essencial no combate à pandemia? Será que o Conselho Europeu e António Costa acreditam que estes países não têm consciência da sua capacidade técnica interna para a produção? Se sim, é uma posição paternalista e ultrajante em relação aos países em desenvolvimento, que na sua maioria, em especial nos países de médio rendimento, possuem as infraestruturas técnicas e o potencial humano para alavancar a produção global de vacinas.

O terceiro e último argumento é tão desajustado que não merece outro instrumento analítico que não a ironia. Que motivos tem a opinião pública para ficar sossegada por o CEO da Pfizer, parte muitíssimo interessada na manutenção das patentes, assegurar que tudo irá correr bem caso as patentes não sejam levantadas? Será que o governo vai passar a assessorar-se desta forma noutros domínios da saúde pública? Irá António Costa ligar ao CEO da Tabaqueira para inquirir acerca da segurança do novo tabaco aquecido? Ou ligará ao CEO de uma cadeia de fast-food, para que este o sossegue quanto à qualidade dos seus produtos? Não sabemos.

Porventura, o maior mistério de todo este processo é a ausência de um generalizado sentimento de indignação quanto a esta posição do governo português. Como pode um governo que se reclama do lado esquerdo do espectro político colocar-se ao lado dos lucros excessivos das farmacêuticas e contra a recomendação do governo dos EUA, do Papa e da própria OMS? Como pode um país, que há escassos dias se indignava com o realojamento de migrantes num empreendimento turístico por razões de saúde pública, não se levantar contra este posicionamento do governo, que segue o isolamento da União Europeia contra a restante comunidade internacional?

Porventura, o estado geral de apatia pode ser justificado por uma dinâmica mais profunda. Encurraladas entre aceitar este governo com críticas moderadas ou abrir o caminho a uma direita radicalizada, as alas mais progressistas da sociedade portuguesa sentem-se bloqueadas e sem fôlego. Mas não haverá nada pior do que a apatia que se começa a instalar. A apatia e a falta de escrutínio trazem o pântano democrático e é dele que se alimentam os inimigos da democracia.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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