Trabalho e família: o eterno busílis
já antes deste “teletrabalho”, a questão do horário e das interferências constantes das questões profissionais na esfera familiar, em muitos sectores de actividade era uma realidade, materializada nos emails, nos whatsapp, nos gps, ou nos telemóveis sempre contactáveis.
Situações recentes suscitaram-me uma renovada reflexão acerca das questões do trabalho e da família, e do modo como conciliamos estas duas dimensões fundamentais da nossa vida.
E a verdade é que não conciliamos. Talvez tenhamos, na lei, um equilíbrio perfeito, na garantia e salvaguarda de direitos, ou na igualdade no exercício da parentalidade, mas o quotidiano, infelizmente, não é a lei, e o desfasamento entre ambos é imenso.
E é-o de modo social, económica e profissionalmente transversal. Ou seja, quem trabalha, em qualquer área (e note-se que vivemos tempos em que quem trabalha dá graças por isso), tem crescentes dificuldades em viver a família com o tempo, o cuidado e o afecto com que as famílias têm de ser vividas. E este “têm”, que acabei de utilizar, é intencional, ou melhor, é um imperativo categórico de responsabilização perante os nossos filhos, perante os nossos pais, perante os nossos companheiros e, também, perante nós próprios e as nossas aspirações e realização pessoais.
Porque o mais simples relance à vida quotidiana das famílias em Portugal coloca em evidência a falta de qualidade dessa mesma vida.
A falta de qualidade ditada pelas distâncias que se percorrem entre a casa e o emprego, pela falta de equipamentos de apoio, pelo dinheiro que é curto no fim do mês, pelas dívidas que acumulamos na pressão para os consumos que ditam o nosso cosmopolitismo, pela deficiente organização e planificação do trabalho e pela predominância, absolutamente avassaladora, das micro e pequenas empresas, que floresceram em nome de um enaltecido “empreendedorismo”, conceito elegante com que mascaramos o desemprego de longa duração, a escassa qualificação da mão-de-obra, a debilidade da economia e, no geral, a desesperança social.
Acontece que os conceitos, tal como a lei, por mais criativos e bem-intencionados que sejam, valem nada, quando a sua aplicabilidade é totalmente distinta dessas criatividade e boas-intenções.
Porque o “empreendedorismo” que nos salta à vista é o que faz trabalhar horas infindáveis e sem pausas, não para enriquecer, mas para sobreviver de modo minimamente digno, honrando os compromissos com as finanças, a segurança social e com todo esse sem-fim de entidades que se deleita em demonstrações da sua eficiência e zelo face aos mais pequenos – porque esse sem-fim de entidades não perdeu os seus tiques de autoritarismo cobarde, que os fazem ser fortes com os fracos e subservientes, atentos e venerandos com os fortes. Os tiques que, ao invés de desaparecerem, nestes quarenta e sete anos de democracia, se revigoraram numa ânsia faminta pela mais ínfima migalha do poder.
Um “empreendedorismo” pequeno e de vão de escada, que faz trabalhar horas infindáveis e sem pausas para, depois de devidamente honrados os ditos compromissos, ter o suficiente para garantir a subsistência e, também, para garantir a percepção de utilidade social.
E depois há os que, para evitarem ver-se forçados a assumir a condição de “empreendedores” (leia-se, a condição de desempregados sem qualquer esperança de retorno), trabalham outras tantas horas e que são coagidos – porque a coacção assume múltiplas formas, e algumas de aparência bastante inocente – a não utilizar os tais direitos que a bem-intencionada legislação lhes garante na teoria, e que, na prática, se traduzem, com excessiva frequência no apontar da porta da rua, que continua a ser serventia da casa. Ou que é, cada vez mais, serventia da casa.
Não deixa, assim, de ser curioso assistir aos recentes debates acerca das questões das fronteiras entre trabalho e descanso, nesta conjuntura do trabalho a partir de casa, a que muitos nos achámos forçados, em consequência da pandemia.
Porque essas fronteiras, em larga medida, já não existiam, e querer assacar todas as responsabilidades à situação presente é uma falácia, dado que já antes deste “teletrabalho”, a questão do horário e das interferências constantes das questões profissionais na esfera familiar, em muitos sectores de actividade (praticamente os mesmos em que esta “modalidade” de exercício do trabalho é aplicável), era uma realidade, materializada nos emails, nos whatsapp, nos gps, ou nos telemóveis sempre contactáveis.
Há muito que a interferência do trabalho nos outros espaços e tempos das nossas vidas é um facto com que lidamos quotidianamente, porque sabemos que o preço de não aceitar, ou sequer contestar, esse facto pode ser demasiado elevado.
Assim, talvez estejamos a colocar as questões ao contrário, uma vez que este “teletrabalho” pandémico não determinou um abissal aumento da interferência do trabalho na esfera pessoal e familiar, mas sim um aumento da interferência da família na produtividade dos trabalhadores, com as tarefas e as reuniões zoom a serem interrompidas pelo choro ou pelos gritos das crianças que, em tempos e circunstâncias normais, estariam devidamente “depositadas” durante o maior número de horas possível nas creches, infantários e escolas, em nome do bom desempenho profissional dos seus pais, ou se quisermos ser realistas, em nome da manutenção de um emprego, que lhes permita não terem de se reinventar nessa fascinante categoria de “empreendedores” em versão lusa.