Exigimos o direito à habitação digna das pessoas Ciganas/Rroma em Portugal: reparação, já!

Todas as palavras já foram escritas. Falta agora compromisso, vontade política e transparência que se traduzam em melhorias reais na condição habitacional das pessoas Ciganas/Rroma em Portugal.

Após 46 anos das promessas de Abril – igualdade, liberdade e direitos constitucionais para todas as pessoas –, sabemos que muitas ficaram por cumprir. No entanto, ressaltamos que a desigualdade no acesso à saúde, educação, trabalho e habitação de qualidade por parte das comunidades Ciganas/Rroma é particularmente gritante na democracia portuguesa.

Há demasiado tempo que se sabe da precariedade habitacional que as pessoas Ciganas/Rroma enfrentam nas mais diversas latitudes do país. Muitas vivem em barracas de madeira e lona ou em casas autoconstruídas sem acesso a água, luz, saneamento básico ou recolha de lixo; outras vivem em habitação pública, tantas vezes em sobrelotação e segregadas do restante tecido urbano.

Estas situações são bem conhecidas pelos municípios, pelos serviços locais da segurança social e pelo governo central. Há pelo menos duas décadas que inúmeros relatórios e pareceres nacionais e internacionais têm vindo a denunciar a situação de precariedade habitacional enfrentada pelas pessoas Ciganas/Rroma. A Assembleia da República já ouviu, por diversas vezes, pessoas das comunidades Ciganas/Rroma, concluindo que existe uma realidade historicamente penalizadora e a necessidade urgente de a resolver. Ao nível supranacional, a Comissão Europeia tem constatado o constrangimento da comunidade Cigana/Rroma no acesso à habitação e a outros direitos fundamentais, recomendando um esforço do Estado português.

De acordo com um estudo recente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU, 2015), sabe-se que pelo menos um terço da população Cigana/Rroma habita em alojamentos não clássicos (32%) e metade reside em habitação pública (46%). Sabemos ainda que, por ação dos municípios, uma grande parte é forçada ao nomadismo, o que implica sobressalto permanente e reforça a precariedade, obrigando a reconstruir de novo, a cada expulsão. A discriminação e a marginalização são uma constante, seja no mercado privado, seja por entidades e organismos do Estado: muitas autarquias não aceitam os pedidos de habitação pública de famílias Ciganas/Rroma e recusam-se a realojá-las, reproduzindo o racismo anti-cigano na sociedade portuguesa, em total contradição com os compromissos de um Estado que subscreve acordos internacionais de direitos humanos.

Perante esta realidade, as recomendações sanitárias a propósito da pandemia são insultuosas: como impor confinamento e regras de higiene a quem não tem casa para se confinar e não tem água para lavar as mãos? É muita arrogância dizer a quem tem filhos com doenças respiratórias graves que tenha paciência perante os temporais que se abatem sobre as suas camas, porque o tempo da política é diferente do tempo da vida.

É muita ousadia dizer a quem vive no meio da lama que se “integre”. Na ausência de uma habitação digna, quaisquer medidas de “integração” são inconsequentes por parte do Estado, acrescentando frustração à vida das pessoas Ciganas/Rroma. Constrói-se assim o argumento de que elas não são capazes de se integrar, quando sabemos que a incapacidade está noutro lugar.

Sucessivos governos têm criado comissariados, comissões e observatórios ao mais alto nível e estratégias nacionais específicas para lidar com esta problemática. A Estratégia Nacional para Integração das Comunidades Ciganas (ENICC, 2013-2022) afirma “promover a melhoria dos indicadores de bem-estar e de integração das pessoas ciganas” e um dos objetivos estratégicos é “garantir as condições para uma efetiva igualdade de acesso a uma habitação adequada por parte de pessoas ciganas”. Questionamos que medidas de apoio efetivo à habitação foram executadas no âmbito desta Estratégia? Fica ainda por perceber porque não se utilizam programas de alojamento urgente como o ‘Porta de Entrada’ e não se garante o acesso a bens essenciais, de acordo com a Resolução da Assembleia da República n.º 151/2017, que era já urgente à data da sua publicação.

A iniciativa e a responsabilidade do realojamento não pode ser só das autarquias, é essencial que o Estado central garanta que a legislação seja aplicada e que a falta de capacidade financeira e técnica de alguns municípios seja suprida, nomeadamente através de estratégias intermunicipais elaboradas com a máxima urgência, por forma a que a igualdade seja efetivada em todo o território.

Abre-se um novo espaço de oportunidade com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR): quase 1700 milhões de euros inscritos para habitação, até 2026, em grande parte para a execução do Programa 1.º Direito. Lembramos que este programa prevê a possibilidade de reconversão urgente de edifícios públicos ou privados para habitação e que o Programa Porta de Entrada está especificamente vocacionado para, “de forma célere, eficaz e integrada, providenciar alojamento urgente e soluções habitacionais”. Sabemos ainda de muitos casos em que casas vazias e utilizáveis no curto prazo estão muito próximas de pessoas com necessidade de habitação. Casas tantas vezes património do Estado, da Igreja, das Misericórdias, ou de privados, cuja função social – das casas e das instituições – torna difícil aceitar que continuem devolutas e em degradação em vez de alojarem uma família.

Exigimos o realojamento urgente e digno para todas as pessoas que vivem em precariedade habitacional, priorizando as pessoas Ciganas/Rroma, por modo a reparar as consequências da perseguição histórica de que têm sido alvo nos últimos séculos.

Todas as palavras já foram escritas, falta agora compromisso, vontade política e transparência que se traduzam em melhorias reais na condição habitacional das pessoas Ciganas/Rroma.

Organizações subscritoras:

AMEC- Associação dos Mediadores Ciganos de Portugal
Amucip- Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas (Seixal)
APICC - Associação para a Integração da Comunidade Cigana
Associação Cigana de Águeda
ACAJUCI - Associação Cristã de Apoio à Juventude Cigana
APODEC- Associação Portuguesa para o Desenvolvimento da Etnia Cigana
Associação Social Recreativa Cultural “Os Viquingues” (Porto)
ASRCCC - Associação Social Recreativa e Cultural Cigana de Coimbra
Costume Colossal - Associação para a Integração das Comunidades Ciganas
FECALP - Federação Calhim Portuguesa
Iniciativa Cigana
Kale Amengue
Letras Nómadas- Associação de Investigação e Dinamização das Comunidades Ciganas
Racismo Não! (Resistência Cigana)
Raízes Tolerantes - Associação Cigana de Jovens e Pais (Castelo Branco)
Ribaltambição - Associação para a Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas (Figueira da Foz)
Sílaba Dinâmica - Associação Intercultural (Elvas)
Techari - Associação Nacional e Internacional Cigana (Loures)
União Romani Portuguesa
UNIR (Resistência Cigana)
Habita! - Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade
Núcleo Antirracista de Coimbra
Plataforma Antifascista de Lisboa e Vale do Tejo (núcleo integrante da Rede Unitária Antifascista)
Rede Unitária Antifascista
SOS Racismo
STOP Despejos

Subscrições individuais:

Almerindo Prudêncio, Activista antirracista
Bruno Oliveira, Mediador
Cátia Montes, Activista pelos Direitos Humanos, Defensora da dignidade das comunidades ciganas
Ivo Guerreiro, Presidente da Comissão de Moradores do Bairro Alfredo Bensaúde
Guiomar Sousa, Activista
Maria Gil, Actriz e Activista Roma
Manuel Abreu
Telmo Maia, Cigano/Roma
Ana Rita Alves, Antropóloga CES-UC
Fernanda Marreiros, Enfermeira
Fernando Moital, Realizador
Francisco Monteiro, Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos
Rita Costa, Investigadora CRIA/Iscte-iul 

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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