Não queremos achatar a curva, queremos invertê-la

Há uma outra curva que carece de atenção: a perda de biodiversidade. Esta é também uma curva chave na persistência da humanidade e do planeta como os conhecemos. É, contudo, importante reconhecer que esta curva precisa urgentemente de ser invertida, não achatada.

Foto
Unsplash

Há mais de um ano que aprendemos e nos familiarizamos com curvas de evolução da pandemia e outros termos mais ou menos complexos: incidência de novos casos por 100 mil habitantes, índice de transmissibilidade R(t), matriz de risco – esta última merece o meu especial apreço, pois surgiu como um desafio do Governo digno da capacidade cognitiva portuguesa. Quem não reconhece o pequeno infecciologista que nasceu dentro de si? Estamos todas e todos altamente sensibilizados, atentos, queremos voltar à normalidade. Finalmente, eureka, a ciência trouxe-nos umas vacinas! Há uma luz ao fundo do túnel, celebremos.

Celebremos também, fazendo jus ao 22 de Abril, o dia da Terra. Lamentavelmente, não venho aqui celebrar nada. Venho, em primeiro lugar, parabenizar todos os esforços colectivos para achatar a curva da pandemia de covid-19, aproveitando a popularidade da terminologia para relembrar que há uma outra curva que carece de atenção: a perda de biodiversidade. Esta é também uma curva chave na persistência da humanidade e do planeta como os conhecemos. É, contudo, importante reconhecer que esta curva precisa urgentemente de ser invertida, não achatada.

Pelo mundo, mais de 37 400 espécies estão em risco de extinção (indica a União Internacional para a Conservação da Natureza), um número que mais do que duplica desde o ano 2000. Em Portugal, o cenário é semelhante, apresentando-se como o quarto país da Europa com mais espécies em risco de extinção. Do aconchego das nossas casas e fácil acesso aos produtos nas prateleiras dos supermercados, para quê pensar nisto?

A biodiversidade alberga uma riqueza inigualável de organismos que prestam serviços essenciais à sobrevivência da humanidade: as abelhas são responsáveis por polinizar aproximadamente 80% dos vegetais e frutas que habitualmente consumimos, sem as quais encontraríamos prateleiras apocalipticamente vazias (recordo-vos do fenómeno do papel higiénico durante a primeira vaga); o plâncton faz-nos o favor de produzir oxigénio, assumo como certo que todos gostemos de respirar (aqui não há máscara nem ventilador que nos valha); os fungos, por quem à partida não nutrimos muito apreço mas dos quais fazem parte os cogumelos que habitualmente integram variadas ementas (estávamos com imensas saudades de voltar àquele restaurante para comer shitake no azeite e alho), estão na origem de vários medicamentos, incluindo a penicilina e são essenciais no processo de decomposição da matéria orgânica; os mexilhões de água doce são filtros vivos e gratuitos, capazes filtrar bactérias nocivas para a saúde humana, mantendo a água limpa e segura (parece que, para além do paracetamol e do oxigénio, beber água é o que nos vale se contrairmos esta devastadora doença).

Estes escassos exemplos servem apenas como representantes de uma multiplicidade de outras espécies invisíveis, mas essenciais. Importa reflectir acerca da eficácia na protecção de espécies populares e bonitas, como o nosso lince-ibérico, igualmente priorizando todas as outras espécies invisíveis que permitem a nossa existência.

É urgente inverter a curva da perda da biodiversidade. É urgente germinar o pequeno conservacionista, naturalista, ecologista que há dentro de nós. Por cá, no mundo da investigação e da ciência, e com o apoio de muitas associações ambientalistas, temos chegado a soluções e nem prevemos qualquer tipo de confinamento ou distanciamento social.

A Estratégia de Biodiversidade da UE para 2030 prevê um orçamento de 20 mil milhões de euros anuais para a classificação de 30% do território europeu como áreas protegidas. O Plano de Recuperação e Resiliência destaca acções de sustentabilidade ambiental. Há dinheiro, há soluções, há pessoas com vontade de inverter a curva, parece que só está a faltar a vontade política de aplicar o conhecimento científico à prática e distribuir a nossa vacina para a conservação da biodiversidade.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários