Uma crise de obediência

Aparentemente, os povos – e os jovens em particular – parecem menos disponíveis para interrogatórios policiais de rotunda e mais predispostos a jogos assimétricos de resistência ao poder político, que começa num convite para jantar.

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Rui Gaudencio

Nestes tempos em que já banalizámos a intrusão das reportagens inquisitivas sobre os motivos que levam os transeuntes à estrada, os dados de mobilidade urbana indicam estar instalada uma crise de obediência ao apregoado dever de recolhimento.

Quem ainda não se deparou como um novo frondoso capilar numa videochamada ou uma irreverente venda de cerveja às 21h, pela porta dos fundos? Da ideia impressiva e anedótica que íamos construindo a partir dos actos subversivos do dia-a-dia, chegam-nos agora dados sobre a forma como a pandemia afectou as convicções políticas dos povos mais tocados pela sua coerção.

Através de questionários recolhidos em 24 países (entre os quais Portugal), o estudo coordenado por Ronald Inglehart valida a percepção de se estar a operar uma mudança na sensibilidade dos povos, que tendem a reconhecer-se, crescentemente, na guerrilha urbana de desobedientes.

Algumas das conclusões extraídas no estudo são expectáveis: o aumento do medo, do pessimismo, o renovado interesse na actividade física ou a diminuição da preponderância de corolários estéticos no olhar do outro – afinal, somos hoje um mundo de pantufas. É também sem grande surpresa que observamos maiores mudanças de sensibilidade política nas camadas mais jovens (entre os 18 e os 35 anos), onde a precariedade laboral determinou um desproporcional impacto económico da crise pandémica. Outras, contudo, deixam-nos a pensar.

Uma delas é a crescente diferente ponderação que estas faixas etárias fazem dos limites à liberdade individual perante as necessidades de manutenção da ordem. Ao que parece, a covid-19 tornou-nos mais libertários.

Esta conclusão é especialmente curiosa se olharmos para a teoria política do próprio autor do estudo, que estabelece uma relação entre a insegurança política e económica e a ascensão de movimentos políticos autoritários, que se propõem a dar-lhes resposta.

A ascensão do vírus libertário não deverá ser uma novidade nacional, bastando olhar para a crescente projecção eleitoral de partidos como o Livre ou a Iniciativa Liberal nos estudos de opinião recentes. Aparentemente, os povos – e os jovens em particular – parecem menos disponíveis para interrogatórios policiais de rotunda e mais predispostos a jogos assimétricos de resistência ao poder político, que começa num convite para jantar.

Ensaiar causas para esta mudança será sempre perfunctório. Certo é que as faixas etárias jovens sofreram mais com as acções estatais do que com o próprio vírus. Agora que se planeiam reconstruir as economias dos escombros pandémicos, impõem-se respostas políticas que restituam esta dívida social intergeracional, sob pena de se aprofundar a erosão institucional presente. Uma crise de obediência é sempre uma crise de legitimidade.

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