A municipalização da Saúde?

Em vez de estarem a ser desenvolvidas medidas concretas para a implementação dos sistemas locais de saúde estabelecidos na atual Lei de Bases da Saúde, com a participação, entre outras entidades, das câmaras municipais, assistimos a um processo que nega o desígnio nacional e constitucional do nosso SNS.

Depois de o governo PSD/PP, presidido por Passos Coelho, se ter empenhado numa ação de produção de legislação visando a transferência de competências do governo para as autarquias locais (ex.: DL n.º 30/2015 e Lei n.º 75/2013), eis que este assunto volta à agenda política nacional.

A partir da Lei n.º 50/2018, o atual governo desencadeou processos de negociação com autarquias locais para a transferência de competências, nomeadamente a nível da saúde.

De acordo com notícias divulgadas na imprensa, estarão a ser negociados “autos de transferência”, em função dos quais as autarquias aceitam ou não essa transferência.

Desde logo, há que referir que o nosso país nunca teve qualquer tradição ou experiência de política municipal na saúde e, por outro lado, importa ter em conta algumas situações noutros países.

Há cerca de 15 anos, na Suécia, onde existe esta tradição de gestão da Saúde pelo poder local, vários municípios geridos pelo Partido Conservador desencadearam processos de alienação de serviços públicos de saúde com a sua entrega a entidades privadas, obrigando mais tarde à intervenção do poder central.

Mais recentemente, temos assistido aqui ao lado, na vizinha Espanha, aos resultados desastrosos da ação das chamadas comunidades autónomas no combate à dramática situação da pandemia.

Com o Ministério da Saúde espanhol reduzido a mera figura decorativa, dado que os poderes efetivos na saúde estão atribuídos a essas comunidades, aquilo que assistimos foi a uma “manta de retalhos” nesse combate.

Cada comunidade adotou as medidas que entendeu, muitas vezes em contradição umas com as outras, sem existir o papel unificador das políticas por parte do Ministério da Saúde.

Esta situação tem sido de tal maneira lamentável que me levou a modificar substancialmente a minha posição pessoal sobre qualquer processo de regionalização no nosso país.

Ainda de acordo com as notícias na imprensa, alguns “autos de transferência”, concretamente com uma autarquia perto de Lisboa, preveem a transferência de profissionais de saúde à exceção, dizem, dos médicos.

Esta é outra tática dissimuladora que na Grã-Bretanha já foi testada com a criação das Parcerias Público-Privadas (PPP).

Na primeira fase, esse foi um compromisso formal em relação a médicos e enfermeiros ingleses, para passados poucos anos estes profissionais terem sido “engolidos” pelos consórcios privados.

Não é difícil adivinhar o que se passaria no nosso país se esta perspetiva municipalizadora fosse por diante.

Assistiríamos a medidas de competição entre municípios limítrofes e ao aparecimento pré-eleitoral de medidas do mais puro populismo.

A política de saúde passaria a uma “manta de retalhos” ao sabor das conveniências dos interesses locais, colocando gravemente em causa a equidade nos cuidados de saúde.

A própria negociação de “autos de transferência” é já o sinal de confirmação dessa “manta de retalhos” inevitável, com medidas que podem variar de forma acentuada de município para município.

E no caso da Saúde Pública/autoridades de saúde, imaginemos o que se passaria com as câmaras a procederem aos licenciamentos e, ao mesmo tempo, a terem a tutela da fiscalização.

De facto, esta perspetiva de aparente descentralização seria uma violenta “machadada” na própria existência do SNS, inviabilizando-o como um conjunto organizado e articulado de serviços públicos de saúde.

O SNS, enquanto instrumento constitucional de garantia do direito à saúde, seria liquidado.

Mas se existem alguns sectores políticos que sempre tiveram a apetência por estenderem a sua área de mando aos serviços locais de saúde, importa também que tenham em conta o reverso da “medalha”, ou seja, quando chegarem as eleições autárquicas vão ser julgados pelo voto devido aos atrasos nas consultas dos centros de saúde, às filas de espera para a sua marcação e à ausência de um número adequado de médicos de família e de outros profissionais de saúde.

É que nessa altura, a quem passariam a ser pedidas contas por essas situações não era a um qualquer ministro da Saúde lá distante na capital e que ninguém conhece pessoalmente, mas ao presidente e vereadores da câmara local.

E aí o voto seria implacável.

Em vez de estarem a ser desenvolvidas medidas concretas para a implementação dos sistemas locais de saúde estabelecidos na atual Lei de Bases da Saúde, com a participação, entre outras entidades, das câmaras municipais, assistimos a um processo que nega o desígnio nacional e constitucional do nosso SNS.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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