Transformação digital, subsidiariedade e reforma do Estado-administração

Face aos efeitos das grandes transições que se anunciam para esta década, espero bem que seja a nossa firme vontade comum, claramente expressa, a comandar a política europeia e nacional e não os arranjos de ocasião, os danos colaterais ou os efeitos não-intencionais a ditar a sorte e o azar do projeto europeu.

Em textos anteriores - A União Europeia e os Estados-nacionais, Celta Editora (2002); Portugal e a constituição europeia, Editora Colibri (2003); A crítica da razão europeia, Sílabo Editora (2019) - tive oportunidade de me referir às relações de governação multiníveis e à tese do Estado-exíguo, a propósito das sucessivas fases do processo de integração europeia e das suas implicações sobre a política doméstica. Ora, na aldeia global e na União Europeia, com as consequências profundas da transformação digital, estas questões deixam de ser questões de estrutura para passarem a ser questões de processo e procedimento, questões de governabilidade mais do que questões de sistema. Por isso, muito mais do que o governo e a governação, confinados pela lógica convencional da fronteira do Estado-administração, temos, hoje, em agenda, o tema da governabilidade em território aberto onde a transformação digital, as comunidades inteligentes e as plataformas colaborativas desempenham um papel cada vez mais fundamental.

Uma teoria multiníveis da governabilidade político-administrativa

Dito isto, dois vetores de mudança estão já em plena laboração. Em primeiro lugar, está em operação um sistema de multilevel governance e networking state, uma governança multiníveis, supra, infra e transnacional. Em segundo lugar, está em profunda mutação a relação entre a administração e o cidadão, diríamos, a mutação do poder em responsabilidade. Vejamos, então, mais de perto, em nome de uma teoria multiníveis da governabilidade político-administrativa alguns aspetos mais salientes.

1) Os planos ou níveis de reforma político-administrativa

A reforma político-administrativa pode ser observada em cinco planos ou níveis principais:

- A reforma jurídico-institucional da União Europeia: mais federal, comunitária ou intergovernamental

- A reforma jurídico-institucional dos Estados-membros: alterações no funcionamento e relação das diferentes administrações públicas

- A reforma político-administrativa nos níveis subnacionais de administração: regionalização administrativa e descentralização administrativa para as autarquias

- As reformas técnico-administrativas: alterações administrativas introduzidas pelo processo de transformação e inovação digitais

- As reformas na democracia participativa e colaborativa: a inovação coletiva introduzida pelas plataformas digitais colaborativas

2) Os cenários de reforma e inovação político-administrativa

No que diz respeito aos cenários de reforma e inovação temos esta tipologia:

- Cenário inovação incremental: uma política de pequenos passos

- Cenário inovação disruptiva: a tecnologia que rompe com as rotinas convencionais

- Cenário inovação corporativa: impulsionada por certos grupos ou setores

- Cenário inovação distribuída: com base em plataformas de grupos de cidadãos

3) O hibridismo das reformas

Não há reformas em estado puro, mas, antes, um hibridismo complexo. Por isso, o mix reformista pode ser como segue:

- União Europeia: um complexo de áreas ou atribuições mais federais, mais comunitárias e/ou mais intergovernamentais

- Estados-membros: subsidiariedade e governação multiníveis com redistribuição de atribuições e competências pelos níveis subnacionais de governo e administração

- Democracia colaborativa: muitos formatos e soluções a partir de iniciativas de coprodução e cogestão com os cidadãos por via de plataformas digitais

- Sociedade algorítmica: o hibridismo das reformas passará, em boa medida, pela transformação digital e pela governação algorítmica no quadro da chamada sociedade algorítmica

Aqui chegados, já estamos em melhores condições de abordar o decálogo da governabilidade em território aberto.

A subsidiariedade e o decálogo da governabilidade em território aberto

A transformação digital, impulsionada pelo plano de ação digital da União Europeia, irá traduzir-se numa dinâmica mais inovadora do princípio de subsidiariedade, ascendente e descendente. Esta é, também, a razão pela qual a integração e a descentralização serão as duas vertentes, externa e interna, responsáveis pela modernização política do Estado nacional. De resto, num Estado de estrutura unitária e com uma sociedade longamente estatizada, uma transferência de poderes e competências para a União sem uma correlativa devolução de poderes e competências para entidades infranacionais poderia parecer uma traição e um crime de lesa-pátria.

Neste duplo movimento do princípio de subsidiariedade é muito provável que o Estado-administração reinvente as suas missões em redor de três funções nucleares e no seu equilíbrio: o Estado-Providência do século XXI, o Estado-Regulador da economia do bem-estar e o Estado-Procurador da justiça social. Para além, evidentemente, das clássicas funções de soberania.

No âmbito da reforma do Estado-administração, os vários planos em operação, a complexidade dos cenários, o hibridismo das reformas e a emergência da sociedade algorítmica permitem-nos falar de mudanças substanciais e de uma transição de longo alcance em matéria de política e cultura administrativas: de uma cultura de poder para uma cultura de responsabilidade, do interesse geral abstrato para o patrocínio do interesse público, da autoridade vertical para a governação em rede, do ato administrativo para a participação dos interessados, da segurança da administração para a administração aberta e o respeito pelos direitos de cidadania. Em síntese, a transformação digital e o duplo movimento do princípio de subsidiariedade, ascendente e descendente, são os vetores principais que informarão a aplicação do decálogo da governabilidade aberta. Vejamos os tópicos principais em agenda:

Primeiro tópico: quando pedimos a todos os atores do sistema socioeconómico maior mobilidade e flexibilidade para enfrentar os desafios do mercado único, moeda única e transformação digital, não parece aceitável que as estruturas, os métodos e as práticas político-administrativas fiquem imunes a este movimento de modernização e mudança. As resistências serão evidentes e, também, compreensíveis, pois o desdobramento administrativo multiníveis gera insegurança e desconforto entre os funcionários; por isso, não admira que a administração pública, ela própria, se torne um aparelho corporativo e que o discurso apologético procure confundir os interesses da administração com o interesse geral.

Segundo tópico: a reforma da administração e a mudança administrativa só serão efetivas quando for clara a distribuição de atribuições e competências no sistema de governação multiníveis; ora, esta repartição está longe de ter uma configuração definitiva, porque a dinâmica intrínseca, técnica, política e organizacional, das políticas europeias e domésticas, ultrapassa em muito a sua atribuição puramente jurídico-institucional.

Terceiro tópico: seja qual for a repartição de competências entre a União Europeia e os Estados-membros haverá, muito provavelmente, uma cumplicidade entre estes dois níveis de governo e administração e, muito provavelmente, uma relação desigual  face às administrações subnacionais, bem como aos direitos, interesses e aspirações dos cidadãos; quer dizer, o facto político mais decisivo para a reforma da administração pública não é tanto uma nova repartição de competências, mas, antes, uma reorganização da sociedade civil “à maneira de Toqueville”, ou seja, a arte brilhante da associação de interesses para tratar, de uma forma decisiva, dos interesses difusos dos cidadãos.

Quarto tópico: por necessidades funcionais imperiosas da governança multiníveis, poderá não ser fácil encontrar o ponto de equilíbrio entre consulta, participação, deliberação e decisão; a nova administração será posta em prática por equipas de missão e/ou estruturas ad-hoc, inspiradas numa cultura cooperativa, multidisciplinar e multivariada, de onde sobressai a liberdade dos contributos individuais, mas, sobretudo, o valor acrescentado do trabalho em rede.

Quinto tópico: os alargamentos da União Europeia, ao aumentarem a heterogeneidade e a divergência e, correlativamente, a escassez de recursos, geram uma politização acrescida da União Europeia e, portanto, uma maior relevância do Conselho Europeu e dos Conselhos de Ministros, mais horizontais, em detrimento das instituições mais supranacionais da União; neste contexto, as administrações públicas correm o risco de ser instrumentos de ação política mais do que instrumentos de cooperação técnica e administrativa e é provável que toda esta turbulência se repercuta desconfortavelmente sobre as administrações nacionais e, em especial, sobre as administrações subnacionais.

Sexto tópico: como agora se observa, mais uma vez, no Reino Unido e em Espanha, uma questão recorrente permanece, isto é, o problema regional pode irromper, abruptamente, sob a forma de regionalismo político exacerbado; a questão pertinente, portanto, é a do neo-regionalismo no plano europeu, por isso, por que não antecipar uma reforma político-institucional no quadro europeu que traga algum conforto às regiões mais problemáticas e que previna os episódios mais agudos desse problema? Se nada acontecer nessa direção, o resultado poderá ser uma nova fonte de politização da administração pública no seu conjunto.

Sétimo tópico: as redes sociais, as comunidades inteligentes e as plataformas colaborativas alargam a base representativa do que pode ser considerado como “o interesse público”; assim, em plena sociedade aberta, as novas associações de interesses irão reclamar, muito naturalmente, uma administração mais ágil e colaborativa com total abertura para novas experiências de administração, fora do alcance dos aparelhos político-partidários tradicionais, pelo que estaremos, indubitavelmente, perante um poderoso fator de mudança e modernização da administração pública.

Oitavo tópico: é muito provável que cada ministro tente seduzir ou recrear a sua própria constelação de interesses profissionais, administrativos, políticos e partidários o que, por sua vez, não deixará de produzir desconforto no comportamento das diversas administrações públicas; a consequência óbvia destas estruturas pessoais de lobbying são alguns efeitos cruzados indesejáveis entre as várias agendas políticas ministeriais, pelo que se adivinham algumas dificuldades para os procedimentos e processos de coordenação intragovernamental e, bem assim, para a coerência da política europeia.

Nono tópico: no plano da cultura político-administrativa, a dimensão das mudanças permite-nos falar de uma transição de longo alcance em matéria de política administrativa, aquela que vai de uma cultura de poder a uma cultura de responsabilidade, do interesse geral abstrato ao patrocínio do interesse público, da autoridade à governação em rede, do ato administrativo à participação dos interessados (os deveres de cidadania), da segurança da administração à administração aberta, participativa e colaborativa.

Décimo tópico: perante tanta indeterminação e hibridismo da governação multiníveis, o mais provável é um período de transição, mais ou menos longo, caracterizado por uma sobreposição de modos de administração: uma administração de consulta, uma administração de tutela, uma administração de missão, uma administração virtual de coprodução e cogestão, administrações delegadas e privadas de interesses públicos, etc. Entraremos, por via desta subsidiariedade um pouco caótica, na senda do pluralismo administrativo.

Nota final

Neste percurso longo pela década de 2020-30, o Estado-administração fará, muito provavelmente, o caminho sinuoso que o levará do Estado-Providência ao Estado-Procurador com passagem obrigatória pelo Estado-Regulador, isto é, um Estado compósito ou composto, em doses variáveis, de providência, regulação e procuração. Em suma, e cada vez mais em resultado da transformação digital e do princípio de subsidiariedade, um Estado promotor e patrocinador do associativismo de interesses comuns, seja do lado da oferta ou do lado da procura, podendo, ele próprio, propor formas supletivas de associativismo colaborativo por via de fórmulas imaginativas de parceria público-privada.

A próxima década será pródiga em contradições, mesmo em colisões políticas graves, em consequência da administração complexa da governação multiníveis. Basta pensar na origem dos fundos de recuperação e resiliência para perceber o alcance do império administrativo dos mestres-algoritmos de Bruxelas e Lisboa. Iremos assistir, no dia-a-dia da administração e dos beneficiários, à afirmação desse império administrativo em tudo ou quase tudo o que diz respeito aos processos de candidatura, contratação, pagamento, inspeção, auditoria e avaliação. E quanto mais transversais forem os programas europeus, como é o caso do pacto ecológico europeu e do plano de ação digital, maior será a operacionalização rebuscada de processos e procedimentos, comandada à distância por Bruxelas e Lisboa, que obrigarão o “pobre destinatário”, desde logo nos avisos de concursos, a desembolsar verbas para apoio e consultoria, sob pena de ver a sua candidatura prejudicada.

Face aos efeitos das grandes transições que se anunciam para esta década, espero bem que seja a nossa firme vontade comum, claramente expressa, a comandar a política europeia e nacional e não os arranjos de ocasião, os danos colaterais ou os efeitos não-intencionais a ditar a sorte e o azar do projeto europeu. Os valores democráticos serão, mais do que nunca, fundamentais. Não podemos ficar prisioneiros do risco moral dos cínicos do costume nem dos comportamentos furtivos dos passageiros clandestinos, sempre à boleia, quase sempre na sombra que nós próprios projetamos.

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