O que é feito do conceito de telefilme?

Hoje em dia, o que mais temos visto são, em rigor, telefilmes. Praticamente todas as produções de longa-metragem da Netflix ou da HBO são telefilmes ou filmes straight-to-video – precisamente porque o modelo de negócio destas companhias assenta na disponibilização individual dos conteúdos.

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Anteriormente, escrevi acerca da importância das plataformas de streaming e de reinventarmos a cinefilia em tempos de pandemia. Após os Globos de Ouro deste ano, venho à procura de um conceito um tanto esquecido, mas que, pelos vistos, está bem presente diante de nós: o telefilme.

Lembram-se, tão bem quanto eu, que o telefilme foi, em tempos, um meio-termo entre um filme e um produto televisivo. Nunca foi um conceito completamente estabilizado, mas era utilizado para caracterizar filmes (dentro dos produtos “audiovisuais”) com as seguintes características: produção (ou co-produção maioritária) a cargo das estações televisivas; orçamentos curtos; escopo afunilado; elenco depauperado; duração normal de uma longa-metragem; e, mais importante e determinante, difusão através dos canais que os promoviam.

Muitas vezes sem direito à suposta distinção proporcionada pela distribuição e exibição em sala, isto significava que um telefilme era como que um filho de um deus menor. Era uma obra numa espécie de limbo, entendida muitas vezes para um consumo tão rápido quanto outros conteúdos da televisão de fluxo. Tinha características de filme, mas sem a capacidade (ou pretensão) de alcançar certos patamares de validação cultural.

Juntamente com o telefilme, existia, também, uma outra noção (mais nos países anglófonos do que em Portugal): os filmes straight-to-video. Embora dependesse do mercado, estes filmes também não eram lançados através do circuito comercial de exibição em sala, para reduzir custos. Saíam directamente para videoclubes, lojas, ou para plataformas de pay-per-view. A história destes filmes está polvilhada de trivialidades com contornos cómicos. Por exemplo, Portugal era dos poucos países no mundo em que os filmes deste género, que tinham Steven Seagal como protagonista, tinham honras de distribuição em sala – fazendo lembrar o bizarro fenómeno do actor David Hasselhoff ter sido um cantor de sucesso no mercado germânico (mas nunca fora dessa esfera).

Durante anos a RTP, a SIC e a TVI encomendaram e produziram telefilmes. No início dos anos 2000, a SIC investiu bastante nestas produções (nas quais se inclui o famoso Amo-te Teresa, que lançou Diogo Morgado e contou com uma inesquecível banda sonora do GNR). Na altura, estas obras tiveram, também, uma restrita circulação em sala, fruto de sinergias experimentais entre empresas.

O telefilme foi tendo diversas vidas em Portugal. Para além do caso já mencionado, poucas vezes mais este subgénero teve uma estratégia de produção continuada e consequente, o que fez com que muitos destes filmes tenham sido produzidos de forma avulsa ou o seu lançamento em televisão tenha sido uma espécie de remendo depois de negociações goradas de distribuição e exibição em sala (o que determinou que esse filme fosse um telefilme por circunstância, e não por natureza). Alguns destes filmes foram realizados por nomes relevantes da nossa praça e, na minha opinião, têm direito a integrar a história do cinema português.

Contudo, hoje em dia (especialmente nos últimos tempos), o que mais temos visto são, em rigor, telefilmes. Praticamente todas as produções de longa-metragem da Netflix ou da HBO são telefilmes ou filmes straight-to-video – precisamente porque o modelo de negócio destas companhias assenta na disponibilização individual dos conteúdos. Porém, não me lembro de alguém lhes aplicar essa designação pejorativa. Entende-se. Muitos são telefilmes stricto sensu, mas pouco ou nada comungam em termos de produção com os seus congéneres mais antigos e pobres. Significa isto que a revolução no mundo do cinema contemporâneo se centra, essencialmente, ao nível do telefilme (não necessariamente produzido por canais televisivos, mas por plataformas que utilizam os pequenos ecrãs como veículos de difusão). Curiosamente, a expressão telefilme varreu-se das nossas vidas e conversas.

A normalização destes conteúdos por parte das plataformas de complemento à televisão e a sua subsequente aceitação por parte das mais altas instâncias canonizadoras (festivais e academias de cinema) passou a dar como adquirido que o filme é “tele”, o que torna a designação “telefilme” numa tautologia. Creio que é caso para dizer: “Morreu o telefilme. Longa vida ao telefilme”.

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