Reinventar a cinefilia em tempos de pandemia

Os modelos de negócio reinventam-se e os comportamentos adaptam-se e acompanham. O facto de vários cineastas de topo embarcarem nestas plataformas diz bastante daquilo que poderá ser o futuro da produção audiovisual e da experiência de visionamento da maioria dos conteúdos.

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Dentro de poucas semanas estaremos há um ano em confinamento. Esta circunstância empurrou-nos a nós, cinéfilos, para uma situação carestia, no que à sala de cinema diz respeito. Poderíamos argumentar que aconteceram poucos eventos cinematográficos de relevo desde que a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia e os estados de excepção se sucederam (o que projectou o sector da cultura para uma situação sem precedentes, mas esse não é o tema de hoje). Muitos filmes viram a sua estreia adiada ou procuraram redes alternativas de distribuição. O mesmo aconteceu com festivais e eventos de atribuição de prémios. Contudo, será que muito disto não terá sido apenas uma forma de acelerar um processo já em marcha?

A tradição de assistir a um filme em sala resulta de opções históricas. Foi graças aos irmãos Lumière que as sessões públicas passaram a ser o modelo de negócio que haveria de predominar. Em contraposição, pela mesma altura, Dickson e Edison propunham um mecanismo individual de visionamento da película. Com o avanço dos tempos e da sofisticação deste modelo de negócio, os próprios comportamentos individuais e colectivos passaram a ser consentâneos com o formato de exibição pública. Por outras palavras, assistir a um filme fazia parte de uma experiência colectiva, o que veio a gerar comunidades e grupos de discussão que estiveram na base da cinefilia.

Todo o ritual inerente à ida ao cinema tem uma simbologia imprescindível para os cinéfilos mais tradicionalistas, que consideram essa experiência como a derradeira e a sala como sendo o verdadeiro lugar ao qual pertence o cinema. Sucede, porém, que fora dessas comunidades, a ida, em 2019, à sala de cinema dificilmente se poderia enquadrar numa experiência colectiva aprazível. Salvo raras excepções, poucos já eram os filmes pensados e filmados tendo em consideração o ambiente de sala.

A entrada em cena da televisão, em meados do século passado, causou disrupção. A introdução de guiões espiralados, a importância do som, a redução do escopo da imagem e a velocidade da acção eram alguns dos elementos que tradicionalmente demarcavam o território da televisão e o distinguiam do campo do cinema.

A televisão também foi, a seu tempo, uma experiência colectiva. Enquanto não houve televisores em todas as casas, era comum o deslocamento ao café ou ao centro recreativo mais próximo para se assistir à emissão de um jogo de futebol. Mesmo quando a televisão passou a fazer parte da mobília, os seus conteúdos continuaram a integrar uma experiência colectiva. As conversas de segunda-feira giravam em torno dos filmes transmitidos durante o fim-de-semana. Aliás, parte da unificação das nações deveu-se ao surgimento da televisão. Através da janela televisiva, a paisagem visual e simbólica de um país passar a ser igual para todos os seus habitantes.

Regressando ao tema inicial, apesar da dificuldade de acesso às salas, será difícil argumentar que estes meses não têm tido momentos altos para a imagem em movimento. As plataformas passaram a ocupar os serões e, através da possibilidade do binge watching, a disponibilizar experiências semelhantes às do cinema. Filmes como The Chicago Seven, ou séries como The Queen’s Gambit (Netflix) ou The Undoing (HBO), correspondem aos mais altos padrões de produção, de acordo com o “american way of filmmaking”. Até o cinema de autor ganhou um lugar especial e digno através do complemento Filmin. É verdade que estes conteúdos podem ser acedidos em condições muito díspares. Nesse aspecto, de facto, perde-se o destino partilhado de assistir a um filme dentro de uma mesma sala (para o bem e para o mal).

No que diz respeito à dimensão colectiva da experiência do cinema nos dias de hoje, esta acompanha as novas tecnologias. A transferência de parte da vivência dos relacionamentos interpessoais para as plataformas digitais é inegável. A partilha de emoções e a celebração do cinema ou dos produtos híbridos pode acontecer através de publicações nas redes sociais, do diálogo entre membros de grupos em plataformas de chat, etc...

Estávamos à espera disto em 2019? Provavelmente não. É para onde caminhamos? Talvez. Os modelos de negócio reinventam-se e os comportamentos adaptam-se e acompanham. O facto de vários cineastas de topo embarcarem nestas plataformas diz bastante daquilo que poderá ser o futuro da produção audiovisual e da experiência de visionamento da maioria dos conteúdos. As mudanças estão a acontecer em todos os quadrantes e sectores das nossas vidas. O cinema dificilmente poderia escapar a isso.

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