Durão Barroso: farmacêuticas devem acabar com pandemia em vez de quererem ganhar mais dinheiro

Numa entrevista à agência Lusa feita por escrito, o ex-presidente da Comissão Europeia salienta que “o vírus não respeita fronteiras” e que o caminho para acabar com a pandemia “não é entrar em competição desenfreada entre uns e outros”.

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O ex-primeiro-ministro português é o presidente da Aliança Global para as Vacinas rcl Ricardo Castelo NFACTOS

As farmacêuticas devem concentrar-se em acabar com a fase mais aguda da pandemia de covid-19 em vez de procurarem ganhar mais dinheiro com acordos bilaterais para a venda de vacinas, disse o presidente da Aliança Global para as Vacinas, Durão Barroso, numa entrevista à agência Lusa feita por escrito.

“Os fabricantes devem comprometer-se a ajudar a acabar com a fase aguda da pandemia e isso significa trabalhar directamente com a [plataforma internacional de distribuição equitativa de vacinas] Covax, em vez de buscar maiores ganhos financeiros por meio de acordos bilaterais”, considera Durão Barroso.

O ex-primeiro-ministro português e ex-presidente da Comissão Europeia salienta que “este vírus não respeita fronteiras” e que o caminho para acabar com a pandemia que desencadeou “não é entrar em competição desenfreada entre uns e outros”, uma lógica que considera que deve valer também para os governos.

Questionado sobre a escassez de vacinas que afecta vários países por causa das limitações de produção, defende que o caminho para resolver o problema e apoiar os países em desenvolvimento é “investir na capacidade de manufactura nesses mesmos países e apoiar o seu fabrico por meio de acordos de transferência de tecnologia”.

Foi o que a plataforma Covax, liderada pela GAVI, Organização Mundial de Saúde e coligação CEPI fez ao assinar “dois acordos deste tipo com o Serum Institute of India”, que deram acesso a “potencialmente mais de mil milhões de doses de vacina”.

Sobre a possibilidade de levantamento de patentes para licenciar a produção de vacinas tal como acontece com os medicamentos genéricos, José Manuel Durão Barroso não vê que seja possível por se tratar de “um desafio muito difícil”.

“Além, obviamente, da grande divergência entre os interesses em jogo, [a abertura da propriedade intelectual para vacinas] não leva em consideração a complexidade do seu desenvolvimento científico e tecnológico, que geralmente envolve milhares de etapas e um grande know-how”, o que as torna diferentes dos medicamentos que podem ser fabricados por produtores de genéricos, argumenta.

É um processo que “vai bem além do mandato da GAVI” e cuja resolução estaria dependente dos governos do mundo, “o que já foi por vezes tentado no âmbito da Organização Mundial do Comércio, mas sempre sem nenhum resultado concreto”.

Durão Barroso lança outro alerta à indústria farmacêutica por causa das mutações do vírus: “Parece cada vez mais claro que os fabricantes poderão ter que se ajustar à evolução viral, incluindo, potencialmente, o fornecimento de futuras doses de reforço.”

“Isso torna a necessidade de acesso equitativo às vacinas mais importante do que nunca, pois quanto mais tempo deixarmos o vírus espalhar-se sem controlo, maiores serão as oportunidades de ele sofrer mutações e de haver reinfecções e mesmo novos surtos da pandemia”, aponta o presidente da GAVI.

Além disso, as mutações “podem diminuir a eficácia das vacinas já existentes”, salienta.

2,3 mil milhões de doses este ano

A plataforma global Covax prevê entregar em todo o mundo 2,3 mil milhões de doses de vacinas contra a covid-19 este ano.

“Esta operação da Covax será a maior distribuição de vacinas alguma vez realizada no mundo”, afirmou Durão Barroso, acrescentando que a entrega de vacinas já começou “desde a Índia até ao Gana, Costa do Marfim, Colômbia, Coreia do Sul, e ainda Angola, Nigéria, Républica Democrática do Congo e Camboja”.

Durante o primeiro trimestre do ano “serão distribuídas quase 150 milhões de doses”, referiu, indicando que “nos próximos dias, vários outros países, nomeadamente africanos, receberão também as respectivas doses de vacinas e as quantidades serão aumentadas até ao fim do ano”.

O processo, que confia que será “um sucesso”, depende de algumas condições: “A prontidão dos sistemas de saúde e dos órgãos reguladores nos países participantes” e o financiamento de que depende a Covax.

Durão Barroso, que foi nomeado presidente da GAVI em Setembro passado e assumiu funções este ano, salienta que “a Covax está preparada para distribuir qualquer vacina que tenha recebido a aprovação da OMS ou de uma autoridade regulatória oficialmente reconhecida como rigorosa”.

Além disso, continua em conversações com as farmacêuticas para haver “doses adicionais” e para “levantar fundos para proteger as pessoas mais vulneráveis do mundo”, que “ficariam sem acesso às vacinas” sem uma Covax, que junta 190 economias mundiais.

Dentro da lusofonia, há exemplos disso mesmo: todos os países participam e receberão um total de 13,8 milhões de doses, “mas enquanto o Brasil se autofinancia, os outros [países africanos de língua oficial portuguesa e Timor-Leste] receberão quantidades apreciáveis de vacinas a título de doação”.

Cada um dos países participantes na Covax deverá receber doses de vacina suficientes “para proteger aproximadamente 3% da população no primeiro semestre de 2021”, o suficiente para “cobrir o pessoal médico e outros trabalhadores especialmente expostos”.

Essa quantidade aumentará “significativamente” no segundo semestre do ano.

A GAVI tem também um protocolo com a Organização Internacional das Migrações para constituir uma “reserva humanitária” para refugiados.

Com o encargo de distribuir mais de dois mil milhões de vacinas a partir de um universo “relativamente pequeno”, a Covax já garantiu a gestão do “maior portfólio de vacinas candidatas”.

“Já estamos a verificar que certas vacinas funcionam com mais eficácia do que outras em determinados contextos e ambientes”, afirma Durão Barroso, considerando que “já há uma série de vacinas candidatas de nova geração em desenvolvimento que são muito promissoras”.

“O mais importante, ao procurarmos encontrar o caminho mais rápido para sair da pandemia, é que vacinas seguras e eficazes sejam distribuídas ao maior número possível de pessoas”, assinala.

Vacinação não deve ser “concurso de beleza entre países”

O presidente da Aliança Global para as Vacinas defende que o processo de vacinação mundial contra a covid-19 não deve ser “uma competição ou um concurso de beleza entre países”.

“A luta não deve ser entre países ou instituições ou empresas, mas sim entre as vacinas, de um lado, e o vírus, de outro”, diz Durão Barroso.

Para o ex-presidente da Comissão Europeia, as diferenças que se verificam nos processos de vacinação têm mais a ver com “opções específicas” devidas a “situações particulares”.

Afirmando, todavia, não querer entrar em polémicas, Durão Barroso destaca que “a verdade é que, ao longo deste processo, vimos países considerados exemplares na gestão da pandemia passarem do céu para o inferno e inversamente.”

A propósito da situação na União Europeia, o presidente da GAVI reconhece que “não há soluções perfeitas”, mas considera que “a cooperação entre os países europeus neste domínio é seguramente melhor que a alternativa [que seria a] de competir por suprimentos escassos”, o que “teria sido um péssimo resultado para os europeus”.

Se “os diferentes países estivessem a competir e a ultrapassar os outros com ofertas de preços mais elevados” e alguns pudessem ter acesso a mais vacinas do que outros, “alguns nem teriam ainda conseguido aceder às vacinas”, o que seria “extremamente desestabilizador para a Europa e até para a cooperação global”, considera.

É neste contexto que o presidente da GAVI sublinha que o importante “é trabalhar em conjunto, em vez de tentar “buscar a imunidade nacional ou regional”.

“Aquilo que é evidente quando vemos a forma como o vírus está a sofrer mutações é que não estaremos seguros em lado nenhum até estarmos seguros em todo o lado, imunizar apenas parte da população nunca derrotará o vírus e aumentará a probabilidade de sua mutação e proliferação”, considera Durão Barroso.

Segundo o ex-presidente da Comissão Europeia, enquanto não se controlar a pandemia, não será possível voltar a um nível de actividade económica e social mais ou menos normal.

“Actualmente, a melhor política económica é a política de vacinação”, reitera.

“Com as sociedades e economias em confinamento, sofrem muito a economia e o emprego (...) só a progressiva imunização nos irá permitir voltar a ter vidas normais e a economia poderá regressar ao crescimento”, observa o ex-presidente da Comissão Europeia.

É neste sentido que sublinha a importância da distribuição de vacinas aos países menos desenvolvidos, nomeadamente em África, na medida em que permitirá uma generalização do processo de imunização.

Durão Barroso lembra ainda que essa é uma das tarefas da Covax – a organização que reúne mais de 160 países para distribuir vacinas – e que o seu objectivo é evitar que se repita o erro de 2009, quando face à pandemia do H1N1 ("gripe das aves"), os países ricos compraram todas as vacinas.

“Espero que a lição seja aprendida, para que da próxima vez que enfrentarmos uma pandemia, o modelo Covax já esteja em vigor para uma resposta ainda mais rápida”, afirma.

E acrescenta: “Da mesma forma, precisamos de melhores sistemas de vigilância para que possamos identificar e responder mais rapidamente, com eficácia, às novas ameaças à saúde humana. Está em causa toda a questão da resiliência (...), que é essencial para as nossas sociedades e em especial para a saúde pública.”

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