O processo de decisão sobre investimentos públicos – a gestão da “bazuca financeira”

A história de decisões sobre investimentos públicos, marcadas por avanços e recuos, em que a vontade prevalece sobre a viabilidade, só se alterará com a adoção efetiva de Planos Nacionais Estratégicos e do seu acompanhamento contínuo para eventuais correções.

Os momentos de crise devem ser aproveitados para analisar e promover os diversos planos estratégicos para o desenvolvimento do País, planos que garantam uma política de Estado e não de governos.

Decisões tomadas num dado período político são frequentemente anuladas no período seguinte. Os governos têm toda a legitimidade para tomar as decisões políticas que considerem em cada momento como as mais adequadas. O que está em causa são decisões e orientações identificadas como “pertença” de um dado Governo, sem que estejam integradas em Planos Nacionais Estratégicos de longo prazo que garantam a sua eficácia numa lógica de continuidade. Para contornar a contestação a essas decisões têm sido nomeadas comissões ad-hoc para estudar o assunto em causa e elaborarem relatórios que depois ficam na “gaveta”.

A desvalorização da Administração Pública tem contribuído para esta situação. Como refere Miguel Poiares Maduro (Expresso de 12 de fevereiro p.p.), “Uma Administração politicamente capturada acaba apenas a validar as opções que intuitivamente correspondem ao interesse do poder político do momento”. A vulnerabilidade do sistema existente é evidenciada no documento “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020

2030”, que salienta a necessidade da revalorização do papel do Estado. O Estado só é verdadeiramente autónomo e forte se contar com organismos técnicos competentes, verdadeiramente independentes, nos quais possa depositar a sua confiança. Pressupõe quadros valorizados apenas pelo mérito.

Exemplos esclarecedores. Na Cimeira Portugal-Espanha, realizada em 2003 na Figueira da Foz, foi “decidida” a construção em TGV de quatro linhas ferroviárias da rede Ibérica. Em complemento com a ligação Porto-Lisboa passaram a ser cinco. Como foram sustentadas estas decisões? Nos governos seguintes foram sendo sucessivamente esquecidas, sendo recentemente ressuscitada a urgência da ligação Porto-Lisboa.

No primeiro trimestre de 2013, o Governo anunciou a construção de um terminal de contentores na Trafaria. No primeiro trimestre de 2014 anunciou que, afinal, seria no Barreiro. Na versão do Orçamento do Estado (OE) de 2016, o projeto do terminal de contentores do Barreiro foi substituído pela “coordenação estratégica entre os portos de Lisboa e Setúbal”. Este terminal deixou de constar nas prioridades do Governo.

Outro exemplo. O processo de decisão sobre a solução aeroportuária para Lisboa com a opção por Portela+Montijo. Decisão sustentada em documentos produzidos essencialmente pelo principal interessado (ANA). Não teve em conta os relatórios solicitados por diversos governos e que defendiam outra solução. A afirmação de que não haveria “Plano B", mas dependeria do EIA, conduziu intuitivamente à desvalorização do papel dos organismos do Estado. Um Estado forte pressupõe uma Administração Pública autónoma, competente e prestigiada que garanta, entre outras funções, a avaliação dos serviços prestados por entidades privadas que, pela sua natureza, estão fora do domínio da responsabilização por atos praticados.

As situações do “agora é que é”, do “para-arranca”, têm prejudicado a engenharia e, em particular, as empresas de projeto e as de construção que, em antecipação, tentam adaptar-se às tais decisões. Decisões tomadas num dado período político e anuladas no período seguinte conduzem a falta de confiança e traduzem-se em graves custos para o Estado (com as conhecidas litigâncias e indeminizações) e para as empresas que apostam em concursos e mais concursos que posteriormente são anulados.

Surge assim a necessidade de uma reflexão sobre as melhores formas de garantir processos de decisão baseados em Planos Nacionais Estratégicos de longo prazo, sustentados em análises de custo-benefício que incorporem, entre outros aspetos, avaliações técnicas, económicas, financeiras, ambientais, de planeamento e ordenamento do território, de desenvolvimento económico e social, minimizando os riscos associados a decisões sem visão integrada.

A história de decisões sobre investimentos públicos, marcadas por avanços e recuos, em que a vontade prevalece sobre a viabilidade, só se alterará com a adoção efetiva desses Planos Nacionais Estratégicos e do seu acompanhamento contínuo para eventuais correções.

A elevada incerteza, agravada pela crise da pandemia, reduz a capacidade preditiva e aumenta o risco na decisão sobre investimentos públicos. A minimização desse risco passa pela adoção de processos de decisão que permitam orientar a “bazuca financeira europeia” anunciada pelo primeiro-ministro.

Só uma lógica de continuidade e de estabilidade, sustentada em soluções enquadradas em Planos Estratégicos Nacionais de longo prazo, é que pode garantir racionalidade e eficácia em todo o processo. A vontade não se pode sobrepor à viabilidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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