Aprender com a tragédia: “Vamos olhar para trás e dar graças à covid-19 por aquilo que nos ensinou”

A especialista em saúde pública Máire Connolly é a coordenadora de um novo projecto europeu para melhorar a resposta da União Europeia a futuras pandemias. “Com esta pandemia, já estamos mais bem preparados para qualquer ameaça futura”, acredita a médica irlandesa.

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A investigadora Máire Connolly trabalhou 17 anos na OMS e alertava em 2017 que o risco de uma pandemia era "mais elevado do que nunca" Martina Regan

O projecto europeu Pandem-2 arrancou este mês com a mira apontada ao futuro: é preciso preparar a União Europeia para futuras pandemias e há lições a tirar da actual. O consórcio permitirá simular futuras pandemias e desenvolverá sistemas informáticos onde possam ser introduzidos dados para análise, permitindo a gestão de recursos como as camas de internamento ou vacinas, tudo em tempo real. “Temos de nos preparar para um novo agente, um vírus que ainda nem sabemos se existe”, explica ao PÚBLICO a coordenadora do projecto, Máire Connolly, por videochamada. Deste consórcio fazem parte a Direcção-Geral da Saúde (DGS), o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (Insa).

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O projecto europeu Pandem-2 arrancou este mês com a mira apontada ao futuro: é preciso preparar a União Europeia para futuras pandemias e há lições a tirar da actual. O consórcio permitirá simular futuras pandemias e desenvolverá sistemas informáticos onde possam ser introduzidos dados para análise, permitindo a gestão de recursos como as camas de internamento ou vacinas, tudo em tempo real. “Temos de nos preparar para um novo agente, um vírus que ainda nem sabemos se existe”, explica ao PÚBLICO a coordenadora do projecto, Máire Connolly, por videochamada. Deste consórcio fazem parte a Direcção-Geral da Saúde (DGS), o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (Insa).

A coordenadora deste consórcio europeu lida com pandemias há mais de 25 anos. Especialista em saúde pública, a também professora na Universidade Nacional da Irlanda, em Galway, trabalhou durante 17 anos na Organização Mundial da Saúde (OMS) e foi uma das cientistas que alertava em 2017 para a iminência de uma pandemia, num grupo de trabalho chamado Pandem, que também liderou. Mas nunca previu que chegássemos a este ponto: “Agora vejo que mesmo o nosso pior cenário não previa este nível de disrupção social e económica.” 

Este projecto começou este mês. Qual é o papel de Portugal?
Foi lançado no dia 1 de Fevereiro. É um projecto de dois anos, tivemos um encontro de apresentação em que esteve presente o INSA e o INEM, com Ricardo Mexia e Luís Manuel Ladeira, que é um enfermeiro que trabalha com o INEM. Temos uma equipa muito forte do lado de Portugal. O Ricardo vai liderar a parte da gestão da força de trabalho. O INEM olhará mais para os trabalhadores que dão resposta às emergências para ver qual a contribuição dos dados na resposta à covid-19 e que dados poderiam ter sido úteis na sua intervenção. 

Quais são os primeiros passos? 
Começámos a coligir toda a informação que foi recolhida para dar resposta a esta pandemia: dados de laboratórios, hospitais, dados sobre a mortalidade, de rastreamento de contactos, sobre a mobilidade (de operadoras móveis, por exemplo), das redes sociais. O que estamos a fazer é coligir tudo isso para ser apresentado num dashboard. Esperamos ter um protótipo nestes primeiros três meses e depois continuaremos a desenvolver estas bases de dados para analisar que indicadores são necessários. Temos de ter em atenção que isto é feito para futuras pandemias. Estamos a desenvolver estas ferramentas para preparar melhor a Europa para futuras pandemias – e até para as prevenir ou diminuir o seu impacto. Teremos todas estas ferramentas funcionais após 18 meses, porque os últimos seis meses serão passados a demonstrar as ferramentas e a fazer simulações de pandemias pela Europa. 

Mencionou o papel das redes sociais. Que dados analisarão?
Um dos desafios que enfrentámos nesta pandemia foi termos baseado muita da nossa acção no número de casos confirmados de covid-19 em laboratório, com uma parte significativa de assintomáticos. Um dos pontos fracos na nossa gestão actual (a nível global) é esta falha em olhar para o impacto mais abrangente da pandemia na saúde mental e também o impacto em factores sociais e económicos, nos rendimentos, o impacto educacional. O que planeamos fazer, olhando para os dados das redes sociais, é perceber como as restrições relacionadas com a covid-19 tiveram impacto nas pessoas. As redes sociais são um recurso muito valioso e tentaremos perceber de que forma é que podem ser usadas para comunicação nos dois sentidos: dar informação por autoridades de saúde, mas também para que o público possa comunicar com estas autoridades. 

Portanto, este projecto não se focará só na questão da saúde e do combate directo a futuras pandemias.
Será sobretudo sobre saúde, mas vamos olhar para outras coisas. Trata-se de um projecto de segurança. É feito ao abrigo de um programa de investigação para sociedades seguras da Comissão Europeia – e, por causa disso, olharemos não só para o impacto na saúde, mas para todos estes factores mais abrangentes. Analisaremos também questões de segurança e de agitação social, com exemplos de países europeus onde se tornou difícil adoptar medidas por causa dos protestos de pessoas que estavam contra a imposição de restrições

Também analisarão o impacto das fake news e desinformação?
Sem dúvida. É uma parte muito importante na gestão da resposta à pandemia. A OMS tem todo um departamento a olhar para a gestão da “infodemia” [uma epidemia de informação excessiva, muitas vezes pouco fidedigna e que se espalha rapidamente], que tenta saber onde é que as pessoas se dirigem quando procuram informação. É mesmo importante que a desinformação seja combatida logo pela raiz. As autoridades devem fazer esclarecimentos, nomeadamente quanto às vacinas. Há pessoas com receios sobre as vacinas que não são baseados na ciência, é importante dar-lhes resposta e que as autoridades de saúde estejam cientes do debate e diálogo que as pessoas vão tendo.

Quando se fala em pandemias é importante ter uma resposta internacional e não só nacional? Em questões de saúde pública, não deveria ser uma questão de fronteiras.
Sem dúvida. Uma das componentes importantes deste projecto é tentar promover a colaboração transfronteiriça, sempre que possível. Há uma lei europeia que fala da gestão de ameaças à saúde entre fronteiras. Aqui, implicitamente, está a ideia de que conseguimos dar uma melhor resposta à pandemia enquanto União Europeia. Temos alguns exemplos em que os recursos foram partilhados entre fronteiras: a procura conjunta de vacinas, por exemplo. A Irlanda tem uma população de cinco milhões, vocês têm uma população de dez milhões, para os nossos países terem de negociar com seis ou sete empresas farmacêuticas em Setembro ou Outubro teria sido bastante complicado quando há 27 Estados-membros na mesma competição. Há benefícios nesta colaboração entre países e esperamos que haja um maior mapeamento dos recursos disponíveis, sejam eles ventiladores, arcas frigoríficas, equipamentos de protecção individual, vacinas ou medicamentos que podem ser úteis numa futura pandemia. Um levantamento minucioso permitiria esta partilha transfronteiriça. 

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HENRY NICHOLLS/REUTERS

Foi uma das especialistas que alertou em 2017 que o risco de uma pandemia era “mais elevado do que nunca”. Ninguém deu ouvidos na altura? O que poderia ter sido feito?
Trabalho nesta área desde 1995, portanto andei 25 anos a dizer “estamos em risco por causa do mundo biológico, há centenas de milhares de vírus que podem ser potenciais riscos para os humanos” e a verdade é que os riscos estão a aumentar. Mesmo agora, estamos a ser muito cuidadosos para não causar mais pânico e preocupações, toda a gente está assoberbada por ter de lidar com esta pandemia. O nosso papel é que as lições que estamos a tirar agora sejam incorporadas em soluções a longo prazo, para estarmos preparados. Mas sim, já ando neste barco há muitos anos. Há muitos países em que foram os departamentos de defesa, nas unidades de microbiologia, que estavam cientes do risco das doenças animais.

A desflorestação é um problema gigante no aparecimento de novas doenças e estima-se que 30% das doenças que apareceram nos últimos 20 anos foram um resultado directo da exploração mineira e florestal em países de alto risco de aparecimento destas doenças. Há ameaças, mas ao falar com os meus colegas muitos têm dito que vamos olhar para trás e dar graças à covid-19 por aquilo que nos ensinou. Porque o potencial de outras doenças com taxas de mortalidade bem mais elevadas é significativo. Fizemos grandes avanços na área do diagnóstico, das tecnologias de vacinas. Temos de monitorizar os incêndios florestais e os eventos de spillover para humanos [passagens de vírus de animais para seres humanos]. Outra parte importante é a detecção precoce de doenças animais onde há hotspots de transmissão. Se não soubermos com o que estamos a lidar, não conseguimos controlá-lo. Isto para dizer que, com esta pandemia, já estamos mais bem preparados para qualquer ameaça futura. 

O nosso estilo de vida actual tem muitos riscos para spillovers futuros. 
Sim. Sobretudo na indústria agrícola e pecuária e, fora da Europa, onde há um contexto de doenças animais em porcos, em bovinos e ovinos. Depende do país. As nossas práticas de desflorestação e agricultura intensiva aumentaram o risco de transmissão de animais para humanos. As alterações climáticas são outro aspecto. Também temos a questão das viagens e comércio e o tráfico de animais. O pangolim é o animal mais traficado do mundo. E, nesta pandemia, foi o provável intermediário. Há muitos factores de risco. No caso da gripe das aves fez-se muito trabalho de investigação e ainda é um risco para os humanos. O H1N1 foi uma pandemia relativamente leve. E fomos complacentes depois ao pensar que não houve impacto, quando na verdade só foi assim porque os mais velhos tinham memória imunitária de uma estirpe similar dos anos 1930 e 1940. Foi por isso que foi mais leve do que a gripe espanhola, por exemplo. 

E alguma vez pensou, enquanto fazia esta investigação divulgada em 2017, que um vírus poderia paralisar as nossas vidas desta forma? Ao gerar tantas mortes e espalhar-se tão rapidamente por todo o mundo? 
Nunca. Agora, ao olhar para aqueles cenários que desenvolvemos, mesmo o nosso pior cenário não previa este nível de disrupção social e económica. Não previa. Pensávamos que seria um cenário de influenza, parecia-nos a causa mais provável. Não estávamos mesmo a pensar que pudesse ser um coronavírus, se bem que o SARS-CoV-1 foi um abrir de olhos em 2003. Uma coisa importante é que o SARS-CoV-1 é 80% idêntico ao SARS-CoV-2, mas conseguimos controlar o primeiro só com 8000 casos e 800 mortes. E só por uma razão: quem fica infectado com o SARS-CoV-1 só fica doente no dia 5, demora uma semana até ficar infeccioso. Nessa semana, pode-se isolar as pessoas e essas pessoas tinham sempre sintomas.

O grande desafio com o SARS-CoV-2 é que há transmissão antes de haver sintomas: é uma adaptação muito inteligente deste vírus que se replica em grandes quantidades na garganta e no nariz antes de a pessoa se sentir sequer doente. E o risco adicional com o SARS-CoV-2 é que também há transmissão por pessoas que nunca desenvolvem sintomas, que nunca ficam doentes. Com as novas variantes, tornou-se ainda mais complicado porque são muito mais transmissíveis. Nunca previmos isto. Analisámos vírus com taxas de mortalidade muito mais elevadas (como o SARS-1, MERS, outros casos de gripe das aves) e só podemos imaginar a destruição que seria se estes vírus se tornassem mais transmissíveis. No fundo, neste projecto, estamos a tentar ter a capacidade para melhorar a procura. Isto requer realmente um investimento de longo termo em infra-estruturas de saúde pública. 

Por falar em investimento, este projecto tem um custo de quase dez milhões de euros. Pode resultar na poupança de muito mais dinheiro e também de vidas?
Absolutamente. O Banco Mundial estimou que cada milhão de dólares investido em prevenção resultaria na poupança de 50 milhões na resposta. Se olharmos agora para o custo estimado desta pandemia, é já de cerca de 16 biliões de dólares, segundo a revista científica JAMA. É muito claro que, se investirmos na prevenção, estaremos a poupar no futuro. Isto aplica-se a qualquer desastre natural. Mas temos sistemas muito eficazes para lidar com as cheias, com os sismos, com desastres naturais. Em termos de desastres biológicos, temos sido complacentes. 

Ainda estamos a cometer erros? No caso de Portugal, por exemplo, fomos tidos como um bom exemplo e agora passámos a um dos piores do mundo em termos de casos e mortes de covid-19 por milhão de habitantes. E na Irlanda também houve um grande aumento em Janeiro. Há ainda muito a aprender?
Um dos maiores desafios, pelo menos neste país [Irlanda], foi a introdução das novas variantes. Isso mudou a dinâmica da doença e da sua transmissão. E também tivemos dificuldades com o período das festas, no Natal, que levou a um aumento da transmissão. Todos os países estão a aprender, não há nenhum país que o tenha feito na perfeição. O que vemos é que alguns países usaram os seus dados de rastreamento de contactos de forma mais eficaz, outros apresentam os seus dados laboratoriais em tempo recorde. Não há resposta que não possa ser melhorada.

O objectivo deste projecto é ter dados para consulta em tempo real?
Sim. Temos de nos preparar para um novo agente, qualquer que seja. Um organismo desconhecido, um vírus que nem sabemos ainda se existe agora. O que teremos no nosso sistema é uma colectânea do número de casos, da faixa etária dos infectados, dos factores de risco, se é transmitida pelo ar ou gotículas, tudo isto estará incorporado nesta solução informática. Poderá analisar-se a capacidade de camas de cuidados intensivos, da força de trabalho, e cada país poderá ver a situação nos outros países europeus. É esta a base. Havendo uma pandemia, os dados ficam disponíveis em tempo real, para perceber onde estão os surtos e que medidas têm de ser tomadas para os controlar. 

É muito difícil tentar detectar o que não se sabe ainda ser uma ameaça?
É! Não sabemos ainda de onde virá uma próxima ameaça pandémica. Há muitos países que estão a desenvolver sistemas de vigilância de animais em países com maior risco. Este coronavírus seria sempre difícil de conter, mas seria diferente se tivéssemos bons sistemas de vigilância animal que identificassem animais doentes. É importante investir nestes sistemas de detecção precoce em países de alto risco – funcionam como um detector de fumo. Dizem-nos que algo não está bem e avisam-nos quando viaja para outro lado. Não sabemos os riscos que andam por aí. Mas o mesmo acontece com os socorristas: não sabem onde nem quando será a próxima cheia, ou o próximo sismo, e tudo o que podem fazer é estar bem preparados.