Do alarme à alegria

É por se sentirem — e estarem — fora do tempo que todos os políticos populistas gritam tanto e com tão pouco tino. Falta-lhes sincronicidade temporal, como falta a quem hoje se ressente com a complexidade, a variedade e a mudança.

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Soldados em uniforme de combate durante um discurso de Adolf Hitler, em Nuremberga, em 1936 Bettmann/Getty Images

Logo a seguir às eleições presidenciais de 24 de Janeiro, partilharam-se imagens de Hitler frente a milhares de soldados — num gesto de alarme relativo ao possível regresso daquele tipo de cenário. O que naquelas imagens ainda existe hoje é a figura de Hitler; o que não existe são os milhares de jovens soldados, mantidos na mais completa ignorância quanto aos propósitos da guerra, prontos a obedecer sem questionar ordens. Não existem, esses milhões de homens, recrutados entre a população civil, de quem se espera apenas força cega e bruta. As fileiras de soldados são hoje preenchidas por membros das Forças Armadas, as mesmas que estiveram por detrás do 25 de Abril e que nunca se perfilhariam diante de uma qualquer deriva neofascista, devemos disso ter a certeza. É de lamentar que tenhamos de revisitar lugares que julgávamos arrumados na memória, mas é este e não outro o momento que se apresenta viver. Agora que a extrema-direita chega a Portugal, eis-nos no mundo e com o mundo; estamos na luta e é bom que esta luta nos implique. O alarme é compreensível, mas talvez baste estar simplesmente alerta.

Combater a extrema-direita passa por confiar nas instituições que sabemos serem paredes mestras sólidas, ainda que imperfeitas da democracia. Nesse sentido, para começar, importa confiar no Governo e nos governantes, eleitos e legitimados através de processos democráticos. Confiar não significa deixar de ser vigilante, mas não se deveria confundir vigilância com presunção de falha por defeito. É estranho o modo como se tem vindo a questionar os gestos de quem nos governa, e dos políticos em geral — como se estes não tivessem outro intuito que o de nos ludibriar e mentir e fosse nossa a responsabilidade de os torturar até nos revelarem as verdades que queriam esconder. O poder corrompe. Os governantes estão no poder, logo os governantes são corruptos — as cartilhas populistas vivem do mesmo tipo de dedução básica. Esta presunção de falha, este tom crispado, feito de interrupções e suspeições, ainda que apenas por exercício do contraditório, pode estar a amplificar o ataque da extrema-direita às instituições, tanto no conteúdo como na forma. Sobre isso é preciso estar, também, vigilante. 

Fora de fronteiras está o mundo, em toda a extensão dos seus problemas. E também aqui importa confiar em órgãos de governança mundial como as Nações Unidas — ainda que sabendo tudo sobre as limitações e problemas estruturais da mesma. A produção de conhecimento em organizações como a ONU é feita em rede, articulando o contributo de múltiplos sectores, governamentais e independentes, de diversas áreas em cada país-membro. Mais uma vez, é impossível conceber hoje que estas estruturas, organizadas em extensão, sejam constituídas na sua totalidade por gente má e corrupta, que se organiza de forma cúmplice para, a uma só voz, mentir à humanidade sobre a humanidade. Antes pelo contrário: o conhecimento produzido por redes colaborativas e interdependentes tende a ser rigoroso, iluminado e inclusivo, o que nos deveria sossegar, tanto relativamente à informação divulgada por estas instituições, como ao perigo de regresso a uma qualquer idade obscura. 

Apesar de tudo o que ainda falta mudar, apesar de circunstâncias adversas — ou da circunstância adversa do capitalismo —, é admirável a sensibilidade de hoje, quando comparada com qualquer década ou século anteriores. Nos anos 1970, para não ir muito longe, e por ser uma década mitificada por muitos, era remota a probabilidade de eu — enquanto mulher — ser realizadora. O meu trabalho criativo dependeria em grande parte de interlocutores do sexo masculino que, de forma legal, aberta e sistemática, se preferiam entre si. Recordo que é apenas em 2010 que o Óscar de melhor realização é entregue a uma mulher. Também nesse ano, Portugal foi o oitavo país a aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que, até 2001, era interdito em toda a parte. Hoje são 29 os países em que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é permitido e 124 em que a homossexualidade é livre, contra 71 em que é proibida.

Importa tornar presentes estas e outras lutas, celebrá-las e entender a magnitude e tracção do que foi alcançado. Podemos achar injusto que uma série com um tema transversalmente humano como o de I May Destroy You – sobre sexo e consentimento – não tenha sido nomeada em nenhuma categoria dos Globos de Ouro. Podemos e devemos denunciar a injustiça, mas sem esquecer que há 20 anos uma série escrita, interpretada e realizada por uma mulher negra teria sido pura e simplesmente impossível de concretizar.

O caminho, lento para uns, demasiado rápido para outros, parece, apesar de tudo, desenhar-se em boas direcções. Atrever-me-ia a sugerir que o mundo já mudou, e que também isso, estranhamente, não tem vindo a ser notícia. Talvez se justificasse fazer uma pausa, dançar uma pequena dança, para de seguida regressar a jogo com a força de quem teve uma vitória na primeira parte. 

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Michaela Coel numa cena da série I May Destroy You HBO

Face à complexidade do momento que vivemos, a extrema-direita pensa assim, e tem a sua lógica, ainda que perversa: se o problema é a escassez de recursos, se não chega para todos, que chegue para um punhado de homens brancos e as suas famílias de bem. Ora, num mundo já diverso, mais inclusivo, extraordinariamente complexo e à procura de soluções globais, é tarde para este tipo de propostas. É aliás por se sentirem — e estarem — fora do tempo que todos os políticos populistas gritam tanto e com tão pouco tino. Falta-lhes sincronicidade temporal, como falta a quem hoje se ressente com a complexidade, a variedade e a mudança.

Às instituições democráticas — e a todos, por inerência — compete desenhar políticas de horizonte que nos permitam, algures à frente no tempo, olhar para trás com alegria. Em rigor, aquilo para que viermos a olhar depende do entusiasmo de que formos capazes já hoje. Talvez por isso, a alegria de cada um de nós, com tudo o que implica de resistência tranquila, nunca tenha sido tão necessária, ou tão política, como nos dias que correm.

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