Covid-19: província argentina mantém 18 mil pessoas confinadas sem distanciamento, água e comida

Governo da Formosa, uma das regiões mais pobres do país, impôs medidas duras contra a pandemia que já geraram acusações de violação dos direitos humanos. Tempo de quarentena supera os 20 dias.

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Protesto contrra as medidas de confinamento na província de Formosa Enrique Garcia Medina/EPA

Há quase um ano que a província de Formosa, uma das mais pobres da Argentina, está completamente isolada do resto do país. Apenas moradores podem entrar e, mesmo assim, só depois de cumprir longas e draconianas medidas sanitárias impostas pelo governo local para combater o coronavírus.

Imagens de pavilhões lotados, sem isolamento das pessoas infectadas, de acampamentos abarrotados nas fronteiras e de gente pedindo ajuda aos gritos de dentro de quartos de hotel têm chocado os argentinos. Além de exigir um teste com resultado negativo, o governo provincial obriga quem ingressar no território a cumprir quarentenas, em locais designados pelas autoridades, que ultrapassam os 20 dias — excedendo a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Actualmente, são 18.800 os moradores mantidos em ginásios, escolas e hotéis, que sofrem com a falta de água, comida e acesso a higiene, além de não terem acesso a médicos. Os locais, trancados e vigiados pela polícia, estão lotados, o que impede que sejam cumpridas as medidas de distanciamento social. Os testes para o diagnóstico de Covid-19 demoram dias para serem realizados, e os resultados são entregues apenas oralmente, sem documentos. Também é assim, sem apresentar documentos oficiais, que as autoridades comunicam às pessoas o tempo que são obrigados a permanecer no local —há relatos de moradores que estão há mais de um mês de quarentena.

Nas fronteiras da província, mais de 7.500 de habitantes locais estão acampados de maneira precária, alguns tentando voltar para casa desde Março do ano passado.

Muitos deles possuem os documentos necessários e, ainda assim, não conseguem entrar no território. Outros não podem arcar com os custos do exame de PCR. Assim, acabam ficando nos acampamentos, onde também falta comida e água — organizações de direitos humanos têm distribuído doações nesses locais.

Acusações de violações de direitos humanos vêm-se acumulando, e a Amnistia Internacional divulgou um comunicado afirmando que as medidas sanitárias impostas pelo governo da Formosa excedem as normas de um Estado de direito. A organização pede uma intervenção do governo nacional.

No dia 11 de Outubro, Mauro Rubén Ledesma, de 23 anos, foi encontrado morto por um pescador no rio Bermejo, na fronteira entre a Formosa e a província vizinha de Chaco. O seu pedido especial para voltar para casa, e para a mulher e a filha de dois anos, tinha sido recusado. Depois de meses à espera para cruzar a fronteira provincial, tentou entrar ilegalmente a nado e acabou por morrer no intento.

No começo deste mês, o marido e os três filhos de Zunilda Gómez, grávida, foram retirados de casa, na cidade de Clorinda, e levados pela polícia para um centro de isolamento sanitário. Apesar de terem feito testes que deram negativo, as autoridades obrigaram-nos a um isolamento de dez dias num quarto sem água, limpeza e com poucas visitas dos médicos. Zunilda Gómez acabou por perder o bebé.

Violação de direitos humanos

As duas histórias são parte de uma série de depoimentos colhidos por advogados e políticos locais, que pretendem apresentar o caso na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A Igreja Católica também se pronunciou, repudiando os métodos usados em Formosa. Jornalistas estrangeiros ou de outras províncias da Argentina não podem entrar na região, mesmo com as autorizações de trânsito emitidas pelo governo nacional e que, em teoria, valem para todo o país.

Na semana passada, a vereadora e advogada Gabriela Neme foi detida ao visitar vários centros de isolamento, pedindo a libertação de pessoas que já estavam há mais de um mês nesses locais com testes negativos ou sem sintomas da doença, mesmo que fosse para cumprir a quarentena em casa. “O ambiente é tão insalubre para todos que está a levar a que pessoas que não tinham o vírus se infectem”, afirmou à Folha.

Gabriela Neme foi detida diante das câmaras de televisão e libertadas horas depois, mas responderá a um processo. “Estou com hematomas e feridas já documentados, também entrarei com uma acção contra o Estado”, disse.

Para o senador Luis Naidenoff, o que está a ser feito na Formosa é uma demonstração de poder que nada tem a ver com a saúde: “É um abuso de autoridade. Temos vários exemplos de outras medidas de quarentena, na Argentina e em outros países, em que é possível cumprir com os protocolos, evitar aglomerações, manter distância social e higiene sem causar esse sofrimento ou abusos de direitos humanos”.

Autoritarismo e pobreza

Formosa é governada desde 1995 por Gildo Insfrán, do Partido Justicialista (peronismo), que comanda a província como um caudilho — a legislação regional permite a reeleição indefinida. De acordo com os dados oficiais, 41,6% dos 630 mil habitantes de Formosa viviam abaixo da linha da pobreza em 2019, o segundo pior resultado em todo o país e acima da média nacional, de 35,4%. No Índice de Desenvolvimento Humano, a região está no último lugar no ranking argentino.

Mais de 80% da população tem empregos vinculados ao poder público e praticamente não há oposição. Mesmo com acusações de vínculo com o contrabando (a província faz fronteira com o Paraguai) e de desvio de verbas federais, Insfrán é blindado pelo peronismo —  movimento político que tem entre seus principais integrantes o Presidente Alberto Fernández e a sua vice, Cristina Fernández de Kirchner.

Naidenoff, que pertence ao partido de oposição União Cívica Radical, afirma que “Insfrán se apoia numa das práticas mais antigas de poder na América Latina, o clientelismo e o medo. Ninguém se levanta contra ele porque aqui não há Estado de direito. A Justiça da província está nas suas mãos, o cidadão não tem protecção, não tem uma Justiça a quem recorrer e teme o seu poder”.

Em resposta às críticas sobre as medidas para tentar conter o coronavírus, Insfrán afirma que o “objectivo é salvar vidas” e refere os dez mortos por conta da doença na província como prova de que está a resultar. O número, que é o mais baixo em todo o país, levanta muitas dúvidas por falta de comprovação. “Vocês pensam que para nós é agradável tomar essas medidas? Claro que não.”

Para Insfrán, os ataques contra as medidas sanitárias impostas pelo seu governo são “uma perseguição política, porque este é um ano eleitoral” — as eleições legislativas argentinas estão marcadas para Outubro.

Vacinação

Na quinta-feira, chegaram à Argentina 5 milhões de novas doses de vacina vindas da Rússia. Até agora, já receberam as duas doses da Sputnik V 200 mil argentinos que trabalham na área da saúde em todas as províncias do país. Agora, o governo prepara o início da vacinação da população em geral, começando pelos idosos e pela população de grupos de risco. A Argentina também fechou um acordo com a vacina da Oxford/AstraZeneca, prevista para chegar em Março. E há negociações ainda em aberto com a Pfizer, a Sinovac e a Sinopharm, além da Moderna.

A Argentina, que tem cerca de 44,5 milhões de habitantes, já registou quase 1,9 milhão de infecções e 47 mil mortes pela doença, segundo os dados da Universidade Johns Hopkins.

Exclusivo PÚBLICO/Folha de S.Paulo

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