Direitos dos animais: contra a hipocrisia e a política de “faz de conta”

Nos meus 16 anos de trabalho em prol dos animais, não encontrei nenhum destes médicos veterinários dirigentes de algumas das entidades subscritoras de uma carta aberta empenhados em corrigir as graves deficiências que há muito a DGAV mostrava, nem tive conhecimento de propostas para resolver o problema de milhares de animais que se viam sem solução, década atrás de década, morte após morte.

Recentemente, cerca de 44 entidades assinaram uma carta aberta, enviada ao senhor Presidente da República e ao senhor primeiro-ministro, protestando contra a transferência da tutela dos animais para o Ministério do Ambiente.

Estranhamente, as mesmas 44 entidades, onde se incluem universidades de medicina veterinária públicas, sindicatos e associações de médicos veterinários, nunca, que se saiba publicamente, escreveram anteriormente aos supra citados, com o objetivo de denunciar ou informar da falta de meios da DGAV e da sua inevitável inoperatividade em matéria de bem-estar animal.

Se há gente na DGAV com mérito? Que tem como fazer mais e melhor? Há! Mas não o fizeram, não o denunciaram e não ousaram não compactuar com a inércia e o “faz de conta” que está tudo bem.

Nos meus 16 anos de trabalho em prol dos animais, não encontrei nenhum destes médicos veterinários dirigentes de algumas das entidades subscritoras da referida carta empenhados em corrigir as graves deficiências que há muito a DGAV mostrava, nem tive conhecimento de propostas para resolver o problema de milhares de animais que, estando a entidade máxima em matéria de bem-estar animal limitada ou inoperante, se viam sem solução, década atrás de década, morte após morte.

O orgulho que sentiria perceber que se tinha juntado um punhado de homens e mulheres, orgulhosamente médicos veterinários, com lugares em instituições de relevância académica, política, sindical, corporativa e científica que podiam exigir do Governo as ferramentas necessárias para se construir uma política efetiva e não uma “de faz de conta”, que elevasse a proteção dos animais em Portugal a um estatuto aceitável ou de acordo com a reduzida lei em vigor nestas matérias.

Não aconteceu, não os encontrei... Já a perseguição, intimidação, medo de represálias, o tipo de ensino nas faculdades onde dessensibilizam os futuros médicos para a defesa dos animais e o facto de tentar estrangular quem quer melhor, afasta os poucos que ousam querer fazer diferente, mesmo não estando em lugares chave para mexer onde é preciso, mas que acreditam que os médicos veterinários são peça fundamental para a resolução de problemas onde o individuo é o animal.

Evoluímos muito nas últimas décadas em matéria de pensamento filosófico, já Rousseau afirmava que os humanos também são animais e que um tem o direito de não ser desnecessariamente maltratado pelo outro. Voltaire trouxe um perspetiva mais sensível, descrevendo os animais, anatomicamente e fisiologicamente iguais ao humano. Foi Jeremy Bentham (séc. XVIII) que veio reforçar a reflexão de Voltaire, e conclui num texto sobre os animais com a seguinte frase que se tornou famosa, “A questão não é: eles pensam? Eles falam? Mas: eles sofrem?” Todos os filósofos contemporâneos, com visões bem-estaristas ou abolicionistas, são unanimes na constatação científica de que os animais sofrem, os animais têm um valor intrínseco e que não se justifica o uso e abuso destes pelos humanos, sem qualquer cuidado com o direito à sua existência digna e livre de sofrimento.

Foi com espanto que, ao observar a lista de 42 entidades [1], não encontrei uma única ONGA, associação ou federação que se dedique ou tenha como verdadeira missão a defesa dos animais domésticos, aliás... a defesa dos animais no geral.

O que encontrei foi um punhado valente de associações, federações e outras tantas que se dedicam à exploração, venda, tortura, mutilação, matança, exploração do nosso património natural, e todas as atrocidades que são praticadas pelos humanos, com o conhecimento do público, com o chapéu da lei e com a conivência das entidades que os deveriam proteger e ainda com fortes subsídios camarários e governamentais.

No entanto, não posso estar surpresa com este aglomerado, todos nós já ouvimos os argumentos destas pessoas: são elas as verdadeiras “amigas dos animais”, os “protetores da ruralidade”, “os verdadeiros conservacionistas”, e outras falácias com que nos brindam, na tentativa de manter o povo sereno e perpetuar a sua influência na não alteração de leis fundamentais e regulamentos, que poderiam contribuir para a evolução cívica da sociedade portuguesa em matéria de bem-estar animal.

Choca-me, no entanto, que seja tão obscenamente óbvio a associação deste grupo de “exploradores de animais e dos seus recursos” a entidades que se espera primarem pela imparcialidade, isenção, formação e informação da sociedade e das classes que representam, e não pelo lobby e corporativismo cego, onde vale tudo, até rasgar ciência e alegar factos falsos.

Se acredito que esta solução da transferência de competências é a ideal? Não. Defendo, aliás, a SOS Animal defende, há já largos anos, a criação de um regulador autónomo de ministérios e interesses, focado no bem-estar animal de todas as espécies, com poderes e organização semelhante ao que existe nos reguladores das telecomunicações em Portugal, e de animais noutras partes do mundo.

É preciso auscultar outros países, entidades nacionais e mundiais, exemplos locais, que já criaram mecanismos funcionais, que efetivamente resolveram problemas como o excesso de população de determinadas espécies, e deixarmos de fazer para apenas parecer e sim, fazer realmente para resolver. Uma instituição dotada de meios, pessoas com conhecimentos técnicos e práticos e com vontade de defender os animais, e não só os seus interesses, os dos amigos, os dos seus negócios e os que lhes dão real jeito.

Mahatma Gandhi dizia que “a grandeza de um país e seu progresso podem ser medidos pela maneira como trata os seus animais”. O Governo ainda não deu a atenção que esta matéria merece. O Governo continua a achar que quem se preocupa com estas matérias são tolos de cérebros vazios. Irão desculpar toda e qualquer displicência, com manobras de relações públicas, com a criação de provedorias e coisas do género, para se acalmar as hostes e o povo permanecer sereno.

É tempo de explicar que não são os interesses de alguns que mandam na evolução cívica de uma nação, é a vontade da sociedade, é a exigência dos cidadãos, que hoje exigem que os problemas reais que assolam os animais, domésticos ou não, sejam combatidos e resolvidos, com ética e método.

Pego nas palavras de outra mulher, “é preciso ter topete” para quem espeta animais com bandarilhas e os rasga por prazer e espetáculo, quem mata animais e dizima famílias e linhas genéticas inteiras, por desporto ou evento sócio cultural, venha falar de bem-estar animal de animais domésticos...

Se haveria alguma dúvida que a DGAV não fiscalizava e sancionava quem devia, a já referida carta, pelo seu conteúdo e seus signatários, mostra o desespero em que vale tudo para manter a situação como está, já que não estorva nem arranja qualquer problema na sua atividade.

“Amaldiçoada toda a moralidade que não veja uma unidade essencial em todos os olhos que enxergam o sol.” (Schopenhauer, séc. XIX)

[1] AATM – Associação dos Agricultores de Trás-os-Montes; ACBRA – Associação de Criadores de Bovinos de Raça Alentejana; ACCLO – Associação dos Comerciantes de Carnes do Concelho de Lisboa e Outros; ACIF – Associação Portuguesa de Criadores da Raça Ile-de-France; ACOS – Associação de Agricultores do Sul; ACRC – Associação dos Criadores da Raça Cachena; ALCAC – Associação Lusa dos Criadores das Aves de Capoeira; AMECAP – Associação de Matadouros e Empresas de Carnes de Portugal; AMIBA – Associação dos Criadores de Bovinos de Raça Barrosã; ANEB – Associação Nacional dos Engordadores de Bovinos; ANPC – Associação Nacional de Proprietários Rurais, Gestão Cinegética e Biodiversidade; ANVETEM – Associação Nacional dos Médicos Veterinários dos Municípios; APA – Associação Portuguesa de Atrelagem; APB – Associação Portuguesa de Buiatria; APED – Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição; APF – Associação Portuguesa de Falcoaria; APIFVET – Associação da Indústria Farmacêutica de Medicamentos Veterinários; APMVE – Associação Portuguesa de Médicos Veterinários de Equinos; APMVEAC – Associação Portuguesa de Médicos Veterinários especialistas em Animais de Companhia; APSL – Associação Portuguesa de Criadores do Cavalo Puro Sangue Lusitano; CAP – Confederação dos Agricultores de Portugal; CNCP – Confederação Nacional dos Caçadores Portugueses; CONFAGRI – Confederação Nacional Das Cooperativas Agrícolas E Do Crédito Agrícola De Portugal; CPC – Clube Português de Canicultura; CPF – Clube Português de Felinicultura; EUVG – Escola Universitária Vasco da Gama; Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa; FENCAÇA – Federação Portuguesa de Caça; FENAPECUÁRIA – Federação Nacional Das Cooperativas Agrícolas De Produtores Pecuários; FEPASA – Federação Portuguesa das Associações Avícolas; FERA – Federação Nacional das Associações de Raças Autóctones; FONP – Federação Ornitológica Nacional Portuguesa; FPAS – Federação Portuguesa das Associações de Suinicultores; FPC – Federação Portuguesa de Columbofilia; IACA – Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais; Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto; OMV – Ordem Dos Médicos Veterinários; PLATAFORMA: SOCIEDADE E ANIMAIS; ProToiro – Federação Portuguesa de Tauromaquia; SCS – Sociedade Científica de Suinicultura; SNMV – Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários; Universidade de Évora; Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro; VETREG – Sociedade Portuguesa De Medicina Regenerativa Veterinária.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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