Procurador Europeu: repor a verdade

As explicações de António Costa destinam-se essencialmente a confundir. Num assunto tão grave e delicado, a falta de rigor e de cuidado não é aceitável.

1. Numa alocução exaltada, em tom ameaçador, intimidatório e castigador, o primeiro-ministro (PM) tomou a defesa da posição do Governo na escolha do candidato a Procurador Europeu. Vale a pena dissecar aqui, serenamente e sem estados de alma, essa explicação. É o que farei já umas linhas abaixo. Mas quem ouvir de novo os palpitantes oito minutos de declarações, logo se dará conta de que não se queria verdadeiramente explicar a posição do Governo. Havia quiçá outros desígnios. Mandar um recado ao Presidente da República, que por duas vezes mostrou ser favorável à demissão da ministra da Justiça. Lançar uma polémica que abafasse a audição parlamentar da ministra, em que esta veio a contradizer-se flagrantemente. E à maneira típica das democracias musculadas, agitar o fantasma do inimigo externo que procura vilipendiar a pátria, dando um sinal de partida para a caça às bruxas. Às bruxas de Bruxelas, claro está.

2. Deixemos de lado episódios pequeninos e tristes. Concentremo-nos nas explicações do PM. Elas não têm qualquer adesão ao quadro jurídico que regula a selecção, graduação e nomeação dos procuradores europeus. E destinam-se essencialmente a confundir os destinatários: meios de comunicação social, opinião pública, cidadãos em geral. Num assunto tão grave e delicado, a falta de rigor e de cuidado não é aceitável.

3. O PM começa por lançar a pergunta e dar a resposta: “A quem compete designar? Ao governo. O governo, pura e simplesmente, poderia ter escolhido quem bem entendesse”. A resposta é errada e falsa. A Procuradoria Europeia foi instituída e disciplinada pelo Regulamento da União Europeia n.º 2017/1939, do Conselho, de 12 de Outubro de 2017. No seu art. 16.º, n.º 3, o Regulamento estabelece que os Procuradores Europeus são nomeados pelo Conselho. Ponto final. Apesar do que disse, o PM conhece este artigo e esta competência; ele sabe bem que o governo não podia nem pode escolher quem mais lhe aprouver.

4. Mas há mais. No n.º 1 do dito art. 16.º, estabelece-se que “cada Estado-membro designa três candidatos para o cargo de Procurador Europeu”. Primeira ilação: o Regulamento não diz “governo”, diz Estado-membro. Daí que cada Estado possa atribuir internamente a indicação dos três candidatos ao seu governo, a um órgão de governo ou gestão de magistraturas ou a um júri ad hoc. Mas, no seio de cada Estado-membro, seja que órgão for responsável pela escolha dos candidatos, ele é competente, apenas e só, para indicar candidatos. Não tem poder para fazer a escolha do Procurador Europeu. Essa é uma competência exclusiva do Conselho da União Europeia.

5. O teor deste art. 16.º, n.º 1, mostra como é ardiloso o “auto-elogio” que o PM quis fazer – e de que a ministra também se ufana – de que transferiram um poder potencial do governo para os Conselhos Superiores. Por um lado, porque a subsistir um tão grande “altruísmo”, ele se reportaria unicamente à indicação do leque de candidatos. E não, como o primeiro-ministro, quis fazer passar, à escolha final do Procurador. Como o governo não dispõe da competência para o escolher, é óbvio que nunca poderia transferir esse poder para qualquer outra instância! Por outro lado, porque mais uma vez, nem sequer isso é verdade. Nos termos da lei portuguesa, que rege a indicação dos candidatos, cada Conselho Superior apura três “candidatos a candidatos”, perfazendo um total de seis. E, de acordo com o n.º 4 art. 13.º da Lei n.º 112/2019, a ministra – sim, a ministra! – selecciona pessoalmente três desses seis. Ou seja, o Governo intervém directamente na indicação dos três candidatos.

6. É, aliás, ao abrigo deste artigo que a ministra excluiu o candidato juiz desembargador, optando por apresentar os três nomes do Ministério Público. Diga-se, de passagem, que este pré-candidato afastado pela ministra era o único que preenchia o requisito do art. 16.º, n.º 1, alínea c), do Regulamento europeu. Daí que se constasse da lista portuguesa tivesse elevadíssimas probabilidades de ser o mais bem classificado pelo comité europeu de selecção. Eis um argumento que pode explicar o seu afastamento.

7. Choca de sobremaneira a alegação de que o comité de selecção previsto no art. 16.º, n.º 2, que faz a graduação dos três candidatos de cada Estado, não goza de independência. Segundo o PM, esse júri europeu é um “órgão designado pelo secretariado-geral do Conselho”. Falso. Basta ler o art. 14.º, n.º 3, do Regulamento, para ver que esse comité é nomeado pelo Conselho e é composto por 11 membros propostos pela Comissão e 1 pelo Parlamento Europeu. Mas o PM entusiasma-se e procura comparar a independência do Conselho Superior do Ministério Público com a deste comité de selecção. Ora, os membros do comité têm de ser obrigatoriamente recrutados de entre antigos magistrados do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas ou membros do Eurojust, membros actuais dos supremos tribunais nacionais, procuradores de alto nível e juristas de reconhecido mérito. Será que uma composição destas não dá garantias abundantes de independência? Como pode ter exclamado “Imagine-se o que não se diria se fosse o candidato indicado por um órgão dependente nomeado pelo Conselho da União Europeia”? Ao lançar esta tirada populista, o PM simplesmente insinuou que 19 dos 22 membros da Procuradoria europeia, incluindo a Procuradora-Geral, estão sob suspeita. Países como a Áustria, a Espanha ou a Holanda comprazem-se em aceitar a nomeação de procuradores “parciais”. Portugal resiste orgulhosamente só! Esta afirmação, vinda do chefe do executivo que tem a presidência rotativa do Conselho da UE, configura uma suspeição grave atirada a toda a Procuradoria. E não devia nem deve passar em claro.   

8. Uma nota final para registar que no Telejornal de domingo passado foi revelado um documento do Conselho em que este assume como motivos fundamentais para não ter seguido a classificação do comité de selecção os elementos falsos enviados pelo Governo português. Mais palavras para quê?

NÃO. Donald Trump. Sem surpresa, mas com grande indignação e inquietude assistimos a um golpe de Estado em directo promovido por um presidente americano em funções. Muitíssimo grave.

NÃO. Data das presidenciais e PS. A realização das eleições a 24 de Janeiro enfraquece a democracia e cria injustiças. Com vontade política do PS, teria sido possível uma revisão constitucional cirúrgica.

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