Uma fotografia

Estou convicto de que a maioria das medidas aplicadas para controlo da pandemia chegou tarde, foi excessiva nuns casos, errada noutros e acertada muitas vezes, com efeitos adversos sociais e económicos muito mais graves e duradoiros do que qualquer possível dano da pandemia.

O potencial de propagação da covid-19 foi desvalorizado e ninguém anteviu a inevitabilidade de uma epidemia com um novo vírus transmitido pelas vias respiratórias. Percebe-se que houve desleixo intelectual e factual face a esta doença. Imaginou-se que o nCoV poderia ser contido com a mesma “facilidade” com que se controlou a SARS ou a MERS. Por outro lado, é agora evidente que as autoridades da RPC esconderam dados, embora seja justo reconhecer que numa primeira fase também terão desvalorizado o potencial infecioso do vírus. Acresce que experiências anteriores com a gripe, muito infeciosa e até mortal, ajudaram à ideia de que poderia ser possível limitar os danos, mesmo em cenário pandémico. Descobriu-se tarde que a covid-19 não é uma gripe.

A doença emergiu mais cedo do que foi notificado e, durante esse tempo de epidemia “escondida”, houve propagação para fora da China. Simultaneamente, a OMS falhou em termos dos seus sistemas de vigilância epidemiológica que estão desenhados para funcionarem em países com liberdades civis estabelecidas. O “situation room” em Genebra, muito avançado, monitoriza a imprensa e comunicações públicas, não espia, nem escuta. O encobrimento, mesmo que não deliberadamente propositado para ferir outros países, mas tão somente para controlar o pânico em Wuhan, foi tão eficaz que até agências sofisticadas, como a NSA e a CIA, não fizeram soar alertas.

Quando a epidemia chegou à Europa verificou-se a quase total impreparação dos sistemas de saúde face a um cenário pandémico. A existência de democracias estabelecidas, paradoxalmente, gerou o pânico nos governos. É curioso como a liberdade de opinião, sentida como uma ameaça por quem governa e não como uma oportunidade, levou a hesitações ou respostas desadequadas de que resultaram um agravamento da dispersão do vírus. Ainda pior foi a sensação de vulnerabilidade face à governação da saúde, mais do que face ao vírus, que acabou por gerar intranquilidade nas populações.

Essa intranquilidade foi agravada pela confissão de incapacidade sistémica face a um tipo de ameaça patológica cuja dimensão foi inicialmente desvalorizada e posteriormente empolada. Ficou claro que as autoridades, não só as portuguesas, não se libertaram dos vícios de serventia do poder político, ao mesmo tempo que tiveram mensagens sucessivamente erráticas, discordantes e confusas. Estou convicto de que a maioria das medidas aplicadas para controlo da pandemia chegou tarde, foi excessiva nuns casos, errada noutros e acertada muitas vezes, com efeitos adversos sociais e económicos muito mais graves e duradoiros do que qualquer possível dano da pandemia. Os impactos a longo prazo na saúde das populações, apesar de se poder admitir que tenha havido alguma poupança na letalidade imediata, não foram medidos nem sequer equacionados.

No ponto em que estamos já podemos considerar, tentativamente, que um dos aspetos mais positivos desta pandemia foi a demonstração da existência de uma grande capacidade científica mundial. O segundo aspeto “positivo” foi a resposta populacional a ameaças reais que, devidamente usada, pode ser útil para efeitos da promoção da saúde e prevenção de doenças com impacto mundial muito mais significativo do que a covid-19 em termos de pessoas afetadas e de mortalidade. É evidente que a pandemia, com o brutal número de publicações geradas, ao mesmo tempo que foi uma oportunidade para desenvolvimento da ciência e da cooperação entre cientistas, será um caso de estudo no que concerne à pressa na divulgação de resultados aparentes e na conceção e execução de medidas. Entendeu-se mal o alcance da real letalidade e quem eram os grupos alvo, do que resultou desperdício de meios terapêuticos escassos. Decidiu-se, sob pressão política e mediática, quase sempre sem conhecimentos suficientes para julgar e fazer escolhas. A lição maior foi que a precipitação é sempre inimiga do bom juízo.

Este texto integra o livro Primeira Linha, que pode ser descarregado gratuitamente aqui

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar