Naturais e estrangeiros no Portugal dos séculos XVI a XVIII

A definição jurídica de “naturais” e “estrangeiros” sofreu, em Portugal, várias alterações ao longo dos séculos XVI a XVIII. Antes, estas duas categorias não eram estáveis, mudando ao longo do tempo e em função de diferentes contextos políticos, sociais, económicos, culturais, geográficos. Essas mudanças tanto nos ajudam a identificar alguns dos princípios de inclusão e exclusão que operavam no Portugal desse período como mostram que, já nessa altura, as ideias que os diferentes grupos sociais e poderes políticos tinham em relação aos estrangeiros nem sempre eram coincidentes.

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Um país cosmopolita?

Na sua viagem a Portugal entre 1798-1802, Carl Israel Ruders, representante da Suécia em Portugal, registou a presença, em Lisboa, de uma “multidão enorme” de franceses, ingleses, de negociantes da Europa, América, Ásia e África, de cantores italianos e bailarinas francesas, de religiosos e de professores estrangeiros. Apesar de não dispormos, até ao século XX, de percentagens credíveis sobre a presença em Portugal deste segmento da população, o retrato que Ruders faz não difere muito de descrições escritas e visuais do início do século XVI. Já nessa altura, o artista holandês que pintou o quadro Chafariz d’el Rey se tinha admirado com a multiplicidade de estrangeiros que circulavam nas ruas de Lisboa.

Entre as muitas razões que explicam a presença de estrangeiros, sobretudo europeus, em Portugal, encontram-se as embaixadas e os casamentos reais ou de nobres de alta estirpe. O séquito da espanhola D. Luísa de Gusmão, mulher do futuro D. João IV, tinha cerca de 400 pessoas. Para além de fidalgos, damas de companhia, criados, esta e outras comitivas incluíam pintores, escrivães, secretários, letrados, assim como relojoeiros, boticários ou luveiros.

A presença, sobretudo em Lisboa e Porto, de académicos, religiosos, bem como de músicos e artistas estrangeiros, também era frequente. A par disso, e para além da mobilidade sazonal que trazia para Portugal muitos espanhóis, e levava muitos portugueses para os reinos vizinhos, peregrinações, festividades, guerras e perseguições religiosas, e, sobretudo, epidemias, motivavam uma grande mobilidade.

A condição imperial portuguesa também favoreceu o estabelecimento de estrangeiros, dos que contribuíram para o povoamento de alguns territórios (como a Madeira e os Açores), aos que procuraram retirar dividendos do comércio internacional e financiaram a coroa portuguesa. Na sua descrição da cidade de Lisboa, de 1551, Cristóvão Rodrigues de Oliveira referiu os muitos mercadores de diferentes origens que viviam em Lisboa, muitos dos quais eram enquadrados por um regime legal próprio, podendo usufruir de vários privilégios.

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Terreiro do Paço, Lisboa, em 1662, numa pintura de Dirk Stoop Museu de Lisboa, MC.PIN.261

Do mesmo modo, a União Ibérica (1580-1640) e as múltiplas guerras nas quais Portugal esteve envolvido estimularam a vinda de estrangeiros. No primeiro caso, a presença de espanhóis aumentou significativamente. Já durante as guerras da Restauração (1640-1668), seriam às centenas os soldados e oficiais ingleses e alemães a ajudarem os portugueses nas lutas contra a monarquia espanhola. Um século mais tarde, ainda se dizia estar na moda os militares de Londres servirem nos Exércitos portugueses.

Para além dos estrangeiros que vieram voluntariamente, outros foram trazidos à força, como era o caso das pessoas escravizadas oriundas de África, mas também da Ásia, as quais terão representado cerca de 10% da população de Lisboa nos inícios do século XVII. Apesar de nem todos os africanos ou asiáticos que residiam no reino serem escravos, as pessoas nesta condição trabalhavam nos campos, ou viviam na cidade, fazendo, em geral, os trabalhos mais pesados. Aos olhos da lei, porém, as pessoas escravizadas não eram consideradas estrangeiras. Tinham um estatuto à parte e ocupavam o lugar mais baixo da escala de alteridade jurídica e social.

Quem era o natural? Quem era estrangeiro?

A resposta a estas perguntas é complexa. Como o reconhecido historiador António Manuel Hespanha (1945-2019) defendeu no livro Os Filhos da Terra (2019), apesar de o reino de Portugal ser dos mais antigos da Europa, os seus habitantes e os outros povos que com eles interagiam não tinham uma imagem unificada do que era ser português, do que era, no final de contas, a identidade portuguesa. Esta imprecisão resultava, em parte, do facto de a definição jurídica do que era ser natural também não ser estável. Além do mais, esta categoria desdobrava-se em estatutos diferentes, permitindo, por exemplo, que alguns naturais tivessem muito mais direitos e privilégios do que outros. O mesmo sucedia com os estrangeiros.

Os pedidos de naturalização de estrangeiros entre os séculos XVI e XVIII ajudam-nos a perceber as mudanças que estes dois estatutos foram conhecendo. A par das fontes jurídicas, a documentação guardada nos arquivos portugueses, a qual inclui até cartas de desnaturalização (i.e, a retirada do estatuto de natural a quem já era reconhecido como tal), é muito rica. Através dela ficamos a saber que, por vezes, o rei atribuía simultaneamente o estatuto de vizinho (na época, o estatuto político mais comum, necessário para solicitar a naturalização) e o estatuto de natural. Assim aconteceu com João de Santo Estêvão (nome já lusitanizado de um estrangeiro estabelecido no Funchal), a quem D. João II permitiu, em 1486, comerciar e gozar dos direitos dos naturais, bem como ocupar ofícios seculares e eclesiásticos. Outras vezes, o estatuto de natural era atribuído colectivamente: na segunda metade do século XVIII, D. José I naturalizou de uma só vez todos os músicos italianos em funções na igreja Patriarcal. Mas muitas vezes a naturalização não era concedida, como aconteceu com João António Luisello e Graciano Salichon, nos finais do século XVIII. O primeiro, por ser de Veneza, à época sob domínio francês, num período em que estavam vedadas as naturalizações de pessoas francesas ou sob o seu poder; e o segundo, por ter ocultado as suas origens, apesar de invocar a necessidade que tinha de lhe ser concedida a naturalização, por ter nascido numa nação que desconhecia “todos os princípios do Direito das Gentes”.

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Pe. Raphael Bluteau, um estrangeiro “lusitanizado”, autor do Vocabulario Portuguez e Latino, segunda metade do século XVIII Biblioteca Nacional

Apenas em 1603, nas Ordenações Filipinas, a compilação oficial do direito do reino, é que o estatuto de natural foi definido de forma mais explícita. O título 55 do livro 2, inspirado em legislação espanhola equivalente, pretendeu acabar com as dúvidas que ainda persistiam sobre quem eram os “naturais destes Reinos de Portugal e Senhorios deles”.

Segundo este título, naturais eram os filhos de naturais que tinham nascido no reino e no império, bem como os filhos daqueles (naturais) que residiam no estrangeiro, mas estavam ao serviço do rei. Também o eram os filhos de uma mãe natural e de um pai estrangeiro, caso o pai residisse no reino há mais de dez anos. Quer isto dizer que as filhas e filhos de mulheres naturais não eram imediatamente considerados naturais. Apenas o eram quando os maridos destas eram naturais ou, se estrangeiros, eram equiparados aos naturais. Também não eram naturais os filhos dos naturais que abandonavam voluntariamente o reino (caso dos renegados, por exemplo). Apesar de não haver nada de explícito em relação à pertença religiosa, subentendia-se, também, que o natural do reino (ou aí naturalizado) era católico.

A valorização dos direitos dos naturais foi negociada logo em 1581 com Filipe I de Portugal e teve sequência na legislação seguinte. Logo em 1591, este rei reservou o monopólio do comércio imperial aos naturais. Em 1603, o seu filho, Filipe II de Portugal, proibiu a concessão de ofícios eclesiásticos a estrangeiros, e, sete anos mais tarde, o mesmo monarca interditou a naturalização de estrangeiros até aí vigente.

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O séquito da espanhola D. Luísa de Gusmão, mulher do futuro D. João IV, tinha cerca de 400 pessoas Atribuído a Alfonso del Cano/Museu de Belas Artes de Córdova

A estas e outras medidas que ajudavam a clarificar quem era o natural associavam-se discursos negativos em relação aos estrangeiros que residiam em Portugal e no império. Já nas cortes de Évora de 1481-1482 se dizia que os mercadores ingleses, florentinos e genoveses lesavam os interesses dos portugueses.

O medo era maior quando estes estrangeiros tinham nascido em territórios inimigos ou não-católicos, como os turcos e, a partir da Reforma, os calvinistas (caso dos holandeses) e outros protestantes. Mas a suspeição também podia incluir os habitantes dos territórios imperiais. Mesmo os filhos de portugueses que aí tinham nascido eram frequentemente discriminados em relação aos que tinham nascido no reino. As teorias climáticas que colocavam a Europa no lugar da civilidade e desqualificavam os climas e sociedades tropicais alimentavam estas últimas posições.

A Restauração de 1640 contribuiu tanto para acentuar como para atenuar alguns dos receios em relação aos estrangeiros. A par das tais centenas de soldados ingleses e alemães dos Exércitos portugueses, nem sempre bem acolhidos, D. João IV aliciaria os mercadores estrangeiros a permanecerem em Portugal, assegurando-lhes novos privilégios.

Uma maior abertura ou um maior fechamento, quase sempre por razões pragmáticas, militares, políticas e económicas, caracterizaram o século XVIII. Foi nesse século que os processos de naturalização se formalizaram, passando a estar sob a alçada da Junta do Comércio e do Tribunal do Desembargo do Paço. Uma análise destes processos permite perceber a motivação económica frequentemente subjacente à atribuição (ou não) do estatuto de natural. Naturalizar um mercador era bem mais provável do que naturalizar um clérigo ou um pobre (estrangeiros), ou alguém que não contribuísse de forma explícita para a riqueza do reino.

Nos finais do século XVIII, as Instituições de Direito Civil do jurista Pascoal de Melo Freire, de 1789, manual utilizado no curso de Direito da Universidade de Coimbra, simultaneamente alteraram e mantiveram o entendimento em relação a esta questão. Freire substitui o vocábulo “natural” pelo de “cidadão” (um estatuto que, nos séculos anteriores, somente era atribuído a alguns naturais), afirmando que todos os habitantes do reino se dividiam entre cidadãos e estrangeiros, mantendo as pessoas escravizadas, porém, com um estatuto à parte. O cidadão concebido por Pascoal de Melo pouco diferia do natural das Ordenações Filipinas, continuando a subalternizar, por exemplo, a mãe natural do reino. Tal como nas Ordenações, o ius sanguinis, (i.e., a atribuição da cidadania de acordo com a ascendência e origem étnica), transmitido por via paterna, continuava a ser a principal forma de identificação do cidadão.

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Lisboa no século XVI, Chafariz d'El-Rey, de um autor holandês desconhecido, ca. 1570-80 Colecção Berardo

Apesar do seu carácter aparentemente moderno, a divisão entre cidadão e estrangeiro (tal como antes, entre natural e estrangeiro) era apenas uma entre as muitas formas de inclusão e exclusão que existiam em Portugal entre os séculos XVI a XVIII. Se os estrangeiros faziam inegavelmente parte dos “outros” externos, a sua posição era bem mais valorizada do que a das pessoas escravizadas, e até mesmo que a de alguns “outros” internos, como os ciganos, por exemplo. Mas a própria categoria de estrangeiro não era estável, havendo estrangeiros desejáveis e indesejáveis, privilegiados ou desfavorecidos.

Na verdade, os muitos estrangeiros que viajantes como Ruders identificavam no Portugal da época moderna eram apenas a ponta de um icebergue que continha em si uma miríade de diferenças. Para além desses “outros” externos que eram os estrangeiros, as normas jurídicas revelam uma panóplia de naturais que eram percebidos como “outros” (internos), caso do cristão-novo ou mourisco, do louco, do vagabundo, ou até mesmo da mulher, sobretudo a solteira e a viúva. Porém, nem todos os “outros” internos eram contemplados pelo direito e a sua invisibilidade jurídica frequentemente contribuía para que a discriminação persistisse.

Ao contrário daquilo que acontece na actualidade — em que os princípios da igualdade e da universalidade são pilares do direito aplicado às pessoas e fazem parte dos discursos dominantes —, a hierarquia e a diferença eram os princípios estruturantes do Portugal da época moderna. A par da naturalidade e não-naturalidade, e frequentemente cruzando-se com estas, outros critérios de inclusão e exclusão eram igualmente importantes. Entre estes destacavam-se a religião, a geografia, o lugar de origem, o sangue, a cor da pele, o género, ou a civilidade e o “barbarismo”, desenhando uma sociedade muito marcada pela desigualdade. Tanto ontem como hoje, as fontes de alteridade eram múltiplas e muitas vezes invisíveis ao olhar do observador mais desatento.


Para mais, ver site do projecto O Governo dos Outros


Historiadora


  

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