Relatos da caixa de um supermercado: a porta fechada

O rasto deixado pela não-estruturação devida da liberdade positiva sempre estoura na classe trabalhadora. Se os lucros não são suficientes, se o funcionário não segue o padrão da loja, se não arrumamos porque não temos hora de abertura e de fecho, tudo é motivo válido para repreensões.

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Markus Spiske/Unsplash

A porta fechada. O que significa? Não queria tentar o valor semântico, ou então as análises de signo, índice, significado por trás da porta. Gostaria de explorar o senso comum de uma porta fechada.

O horário de funcionamento do mercado é das 9h30 até as 20h durante a semana e das 10h às 19h nos sábados. Entretanto temos orientação da gerência de que se estivermos com as caixas abertas, mesmo fora do horário, clientes podem entrar.

Um carro pára, o condutor pega na máscara pendurada no espelho retrovisor, sai do automóvel e caminha para a loja. A porta nunca esteve aberta. O cliente, imerso na sua rotina, não presta atenção ao trabalho daqueles que estão para lá da porta fechada; bate no vidro e espera que o deixem entrar. Nós abrimos, paramos de repor legumes e verduras e atendemos ao universo que acabou de passar pela porta, que agora está aberta. Inácio, munido de máscara, cesta de compra e uma lista, peregrina por entre os menos de 200 metros quadrados da loja. Enche um carrinho às 8h40 da primeira parte do semicírculo do sol, enquanto isso tentamos repor as verduras, arrumar a loja, varrer, passar pano. Agora mais um cliente entrou na loja, depois outro e outro. Abrimos às 9h30?

Nos estudos de cultura, a ideia de liberdade é sempre muito debatida. Aquela máxima de seu direito terminar quando começa o do outro. Ou a tal liberdade de expressão. Somos jogados nesse mundo cheio de conceitos e projectos ideológicos e acabamos por assinar um contrato social que nem sabemos exactamente o que significa. E sabe qual é o pior desse contrato em forma de mercado de trabalho? É que aceitamos as letras minúsculas. O dinheiro passa a ser o limitador da verdade e a raiva construída pela contradição da vida quotidiana precisa ser regulamentada pela Constituição. A ideia de podermos fazer qualquer coisa, se tivermos dinheiro, foi apelidada de liberdade negativa. Entretanto, o contrato social que assinamos ao nascer, a constituição federal, coloca uma série de imposições para que a vida em sociedade não aceite abusos; a essa fiscalização foi dado o nome de liberdade positiva.

Inácio, e o seu mundo particular, usa da liberdade negativa para testar a lei da loja: o horário de funcionamento. Entretanto, a fiscalização, os detentores da liberdade positiva, não acreditam em sua própria carta magna e permitem a extrapolação do padrão de liberdade para o uso de Inácio. Tudo pelo dinheiro. Ou, como dizem os jovens no Brasil, “são mais vinte dols”. Inácio pede ajuda, pega produtos, finge não ver a nossa necessidade de arrumar tudo e, quando sai da loja, deixa a porta aberta.

Quando o último cliente que seguiu Inácio sai da loja já são 10h. Acabamos por não conseguir dar conta de arrumarmos tudo. Qual o resultado disso? A gerência sobe para ver como estão as coisas e somos chamados à atenção porque ainda não terminamos de repor os produtos. O rasto deixado pela não-estruturação devida da liberdade positiva sempre estoura na classe trabalhadora. Se os lucros não são suficientes, se o funcionário não segue o padrão da loja, se não arrumamos porque não temos hora de abertura e de fecho, tudo é motivo válido para repreensões.

Enquanto isso, Inácio continua a sua trajectória de ego. Espero que ele seja patrão, porque se for funcionário qualquer dia alguém bate na sua porta de vidro e já se viu o que pode acontecer.

Mas, e para si: o que significa uma porta fechada?

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