Relatos da caixa de um supermercado: parem os barulhentos

Se a idade das trevas era cristã, os iluministas serviram para tirar cabeças e a URSS para servir de vilão aos filmes de Hollywood, vamos entrando num momento anti-ciência onde parece que os que falam mais alto, mais rápido e coisas mais absurdas chegam aos sítios mais inusitados, como a presidência do Brasil

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Nuno Ferreira Santos

A quarentena está a voltar. E esse texto vai ter muito de política.

Peço que se sentem, peguem numa boa taça de Muralhas – não esqueçam que só se vende álcool até as 20h – e venham ler um pouco desse “wanna be a teacher” que escreve um pouco sobre gestão política nesta crónica.

Pensando politicamente, o governo socialista demorou para agir em relação ao crescimento do número de casos enquanto tentava manter o discurso do “a economia não vai aguentar”. Como se a mão invisível do mercado estivesse agora unida com a mão cristã pedindo ao Estado-Deus protecção dos ataques do coronavírus. Pensando em termos de gestão, alguns erros estruturais graves foram cometidos: não organizaram a “retoma económica” durante o Verão quando podiam aproveitar a queda no número de casos para investir em hospitais de campanha, em equipas especializadas e equipamentos para minimizar o risco de sobrelotação dos hospitais. Afinal, todo o mundo sabia que viria uma segunda vaga. Poderiam ter unido forças com as universidades para estruturar unidades, pensar em como optimizar empregos, melhorar os sistemas informáticos, virtuais, mediáticos e de acompanhamento dos casos.

Não foi feito, a vida voltou ao normal, os jornais diminuíram o foco no vírus e os centros comerciais tiraram as fantasias de Pai Natal e espalharam árvores e bolas por aí. Mas o vírus, que nunca saiu, recuperou o ar do calor do Verão e voltou para atormentar, com os seus números alarmantes, a vida dos médicos, enfermeiros e as nossas.

Agora voltam os teletrabalhos, finais de semana em casa e, pouco a pouco, a rotina de Março escancara as nossas lembranças como o tio chato das festas de fim de ano. Entretanto, no mercado não existe coronavírus. Somos serviço essencial, a nossa força de trabalho vale mais do que o perigo de transmitirmos a doença e, dia após dia, pego na minha mascara, no meu avental e no meu sorriso e vou colocar o meu pulmão asmático em risco.

Nesse cenário, descobri que temos uma cliente daquelas que andam com o nariz fora da máscara, com várias apostilhas no carro, esbravejando vídeos que comprovam que o novo coronavírus é uma invenção comunista para destruir o mundo capitalista. As teorias da conspiração e os seus inventores são os antigos escritores frustrados, os poetas anónimos que, com a internet e as redes sociais, se encontraram e criaram um mundo que adora fazer barulho.

Se a idade das trevas era cristã, os iluministas serviram para tirar cabeças e a URSS para servir de vilão aos filmes de Hollywood, vamos entrando num momento anti-ciência onde parece que os que falam mais alto, mais rápido e coisas mais absurdas chegam aos sítios mais inusitados, como a presidência do Brasil. E, nesses dias, uma das minhas colegas conversava com essa cliente; chegaram à maravilhosa constatação que vivemos dias iguais aos de Salazar. Nessas associações terraplanistas vamos, aos poucos, deixando a ciência morrer a olho nu, deixando os loucos assumir o poder sem nada fazer.

Alguém, por favor, pare os barulhentos!

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